A democracia representativa está sendo questionada há décadas, inclusive nas democracias mais tradicionais, como os Estados Unidos e a Inglaterra. Desenvolveu-se lá um campo de estudos de cultura política que se ocupa em tentar entender como os cidadãos se relacionam com as instituições democráticas. Um dos aspectos que chamou a atenção dos pesquisadores nas pesquisas de opinião foi o baixo senso de “eficácia política”: grande parte dos cidadãos se sentia incapaz de influenciar o processo político e por isso seu comportamento apresentava a tendência de passividade. Outro aspecto constatado foi, nas últimas décadas, o distanciamento dos cidadãos face aos partidos, sindicatos e outras organizações tradicionais.
No Brasil, a nossa democracia é recente, mas apresenta aspectos comuns aos dessas democracias seculares, entre eles a dificuldade de aproximar os cidadãos das instituições políticas. Em todas as pesquisas de opinião realizadas nos últimos 20 anos os partidos, sindicatos e movimentos sociais existentes não atraem as maiorias, que ficam olhando o cortejo passar, criticam, mas não se envolvem, salvo nas eleições obrigatórias. A maior parte dos cidadãos não gosta do que vê, mas também não se envolve.
E de repente, sem aviso prévio, o povo foi às ruas. O povo? Não todo o povo, mas muita gente, especialmente jovens de classe média. Seus protestos impressionaram o país. Passaram a impressão de que o tal “baixo senso de eficácia política” não existe mais. Afirmaram que “o país acordou”, que estão nas ruas “mudando o país”. O fato em si é extraordinário, é um alento para quem acredita em democracia participativa.
Mas, o quadro é complexo. Não há foco único nas manifestações. Cabe de tudo um pouco, das tarifas do transporte público à “cura gay”. Diferentemente do movimento Diretas Já e do Fora Collor, dos quais participei, que foram movimentos mais homogêneos, com uma visão progressista e de esquerda. Ademais, além das pautas diversificadas, há agora a nota triste das depredações e do vandalismo. A violência assusta, o que é péssimo para a democracia.
Vejamos o lado saudável das mobilizações. Elas já modificaram a agenda política do país ao esquentar temas como a mobilidade urbana, os recursos para saúde e educação, e o enfrentamento da corrupção. Isso é um ganho importante. A energia das ruas pode abrir o apetite de muitos jovens para participar do movimento estudantil, das organizações sociais e ajudar a renovar os partidos. Certamente irão emergir novas lideranças, que expressarão as demandas das ruas.
Por outro lado, as manifestações podem por em xeque a democracia, caso as pautas conservadoras ganhem espaço. Basta recordar que muitas ditaduras se valeram da presença das multidões nas ruas. Isso aconteceu no Brasil às vésperas do golpe militar de 1964, quando mais de um milhão de pessoas foi às ruas na Marcha da Família com Deus pela Liberdade, organizada pelos setores conservadores contra as reformas de base anunciadas pelo presidente João Goulart. Foi um típico movimento reacionário das elites, que sensibilizou muita gente boa e ingênua. Há alguns sinais preocupantes de que uma parte do vandalismo atual esteja sendo orquestrado por forças políticas extremistas que querem ver o circo pegar fogo.
O trabalho policial em momentos como o de agora é delicado e exige equilíbrio. Se há demasia no uso de estratégias repressivas, a tendência é de insuflar as manifestações e manchar as próprias instituições democráticas. Se as estratégias repressivas são fracas, difunde-se a ideia de desgoverno e desordem. A democracia requer sabedoria no uso da força policial, sem excessos e também sem permitir que o vandalismo se propague.
A presidente Dilma e boa parte dos atuais governantes, por conhecer bem os caminhos escuros da ditadura, trilharam desde logo o caminho do diálogo com os manifestantes. É o único caminho democrático, aquele que pode aproveitar a imensa energia das manifestações e canalizá-las para o aperfeiçoamento das instituições. Não podemos retroceder.
* Professor, cientista político














