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Autodeclaração e heteroidentificação

A referência à autodeclaração para ser enquadrado na cota racial em concursos públicos deve ser compreendida na perspectiva de atribuição de efeitos relativos à declaração dada pelo candidato, podendo ser escrutinada, verificada, validada, exatamente por não ostentar cariz absoluto.

A validação, longe de encerrar pré-conceito, desconfiança, presunção de má-fé por parte do declarante, constitui-se numa valiosa ferramenta de controle, de salvaguarda à política pública de reserva de vagas, para que seja materializada apenas em favor de quem efetivamente deva ser destinatário dela.

Assim como o fato de um indivíduo branco autodeclarar-se negro não o torna vítima potencial/automática das manifestações de racismo; a circunstância de um negro identificar-se como branco, não garante imunidade à discriminação e, tampouco, confere privilégios ostentados pela cor da pele afirmada.

Isto permite apreender a essencialidade de ter materializada uma costura entre o dito e o confirmado, em atenção ao modo como aquela pessoa é percebida, recebida, tida e racialmente classificada na sociedade em que vive.

Veja-se, a propósito, que a denúncia às fraudes é realizada, no mais das vezes, exatamente por coletivos vinculados à causa negra, expressando inequívoco reconhecimento de que a falsidade das autoatribuições raciais tem potencial de desviar a finalidade do sistema.
Entendo que não há razão para sermos refratários ou sensíveis à expressão cunhada como afroconveniência (ou o que se convencionou chamar de afro-oportunismo), pois, longe de imputar o mau uso, por conveniência, da condição de negro; ela é dirigida para os brancos, para aqueles que, não sendo negros, passam a se autodeclarar como tais, buscando a obtenção de um direito que não lhes cabe, burlando a franquia em detrimento daqueles a quem ele se destina – uma face mais do racismo.

Importante também ter presente o comparativo entre a realidade brasileira e a estadunidense, uma vez que, aqui, como ministra o sociólogo Oracy Nogueira (Preconceito Racial de Marca e Preconceito Racial de Origem: sugestão de um quadro de referências para interpretação do material sobre relações raciais no Brasil. Tempo Social, Revista de Sociologia da USP), o preconceito racial opera pela marca (fenótipo) da raça e se constitui a partir de uma atitude negativa dispensada ao indivíduo negro “nivelando o preconceito enfrentado, a depender do grau de traços negróides ou caucasoides que ele carrega”; ao passo que, lá, o preconceito se estabelece a partir da origem do sujeito, (genótipo) ancorado na ancestralidade genética, no sangue, ainda que não haja no cidadão os marcados traços fenotípicos negróides.

Elemento merecedor de um lugar central no debate é o que permeia a categoria pardo, a partir da invasão do colonizador português e do incentivo governamental ao branqueamento da população.

A conformação do pardo ao molde das cotas ainda suscita desencontro e divergência, tanto na academia, quanto nos movimentos sociais, não sendo diferente no âmbito do sistema de justiça.

Tendo a compreender, reconhecendo estar pisando em terreno ainda pouco desbravado, que a mera pigmentação da pele na cor parda não seria suficiente, exclusivamente, para tornar destinatário da reserva de vaga. A este pormenor devem se somar outras variáveis fenotípicas.

Nas comissões de heteroidentificação deve-se adotar a cautela de aferição presencial do fenótipo, por ocasião da verificação. A providência se justifica, como dever de cuidado, diante da fácil manipulação que fotografias e imagens em geral podem sofrer, por meio dos incontáveis filtros disponíveis.

Devem deliberar com critérios precisos, motivando a decisão, oferecendo condições para que o candidato possa fazer exercício do direito de defesa.