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Lideranças ligadas a iniciativas falam sobre perspectivas

Há no mundo, segundo dados da Organização Internacional do Trabalho (OIT) de 2020, cerca de 160 milhões de jovens em situação de trabalho infantil, o que impacta diretamente no seu desenvolvimento físico, psicológico e educacional. No Dia Mundial da Luta Contra o Trabalho Infantil, lideranças ligadas a iniciativas falam sobre a situação atual e perspectivas. Devido à pandemia de Covid-19, notou-se uma estagnação na tendência de queda percebida entre 2000 e 2016, que apontava a redução em 94 milhões de crianças inseridas no trabalho infantil. A Organização das Nações Unidas (ONU) estima que o desfavorecimento socioeconômico pós-pandemia tenha contribuído para o agravamento da situação.


Para a Japan Tobacco International (JTI), responsável pelo programa Alcançando a Redução do Trabalho Infantil Pelo Suporte à Educação (Arise), que desenvolve e implementa atividades que progressivamente diminuam o trabalho infantil no campo, e para o Instituto Crescer Legal, que oferece alternativas às crianças e adolescentes rurais, sobretudo na área educacional, há consenso de que a educação é pauta prioritária nas ações de combate ao trabalho infantil.
Três lideranças falam sobre o assunto. Marinês Kittel, supervisora de Projetos Sociais da JTI, Flavio Goulart, diretor de Assuntos Corporativos & Comunicação da JTI e Nádia Fengler Solf, gerente do Instituto Crescer Legal, iniciativa do Sindicato Interestadual da Indústria do Tabaco (SindiTabaco) para combate ao trabalho infantil.

Segundo a OIT e do Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef), o trabalho infantil teve um aumento pela primeira vez em duas décadas. Como as organizações preocupadas com o problema enfrentam o desafio de reverter essa tendência?


Marinês – O trabalho infantil no campo é complexo e não se resolve apenas pelas ações pontuais de empresas, em que pesem os investimentos e esforços dedicados à conscientização, educação das crianças e profissionalização dos jovens. É uma rede de agentes, que precisa se mobilizar e atuar em ações conjuntas. O sucesso depende da compreensão de suas causas, dos motivos que levam ao problema, e do envolvimento e da colaboração de várias partes interessadas, o que inclui as três esferas do governo, os sindicatos de empregadores e trabalhadores, a sociedade civil, o Ministério Público e as comunidades impactadas.

Pesquisas apontam que há uma tendência de crianças e jovens trabalharem ao lado de suas famílias como forma de aumentar a renda familiar ou onde deixar as crianças durante o trabalho dos pais no campo. O que pode e já vem sendo feito para coibir essa prática?
Marinês – A JTI atua fortemente na conscientização dos produtores integrados quanto à ilegalidade da utilização de trabalho infantil na cadeia produtiva de tabaco, reportando às autoridades competentes as irregularidades que são constatadas no campo, atendendo ao Termo de Compromisso/Acordo firmado entre empresas associadas ao Sinditabaco e o Ministério Público do Trabalho. Também atuamos na aprendizagem por meio do Instituto Crescer Legal, onde jovens do ensino médio participam de aulas de contraturno. As empresas vêm se estruturando e inserindo ações de sustentabilidade onde um dos pilares é o social e aqui, o trabalho infantil. O Sistema de Garantia de Direitos de Crianças e Adolescentes, criado para assegurar e fortalecer a implementação do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) por meio da articulação entre Estado, famílias e sociedade civil, tem um papel fundamental no enfrentamento à violação, assim como o poder público. A sociedade civil precisa contribuir porque combater o trabalho infantil é um dever de todos os cidadãos e acreditamos que a informação e a mobilização são ferramentas essenciais, principalmente quando temos o engajamento da Rede de Proteção do Direitos da Criança e Adolescente.

Ainda de acordo com levantamento da OIT, a pandemia de Covid-19 poderá levar outras 8,9 milhões de crianças e adolescentes a ingressar no trabalho infantil no mundo até o final de 2022. Como programas dedicados à diminuição do trabalho infantil no mundo, como o Arise se organizaram diante desse cenário para lidar com o problema? Quais os principais desafios?
Marinês – Pesquisas apontam que as principais causas no Brasil são pobreza, má qualidade da educação e questões culturais. Precisamos reforçar e incentivar o avanço na desconstrução dos mitos. É preciso focar na educação, crianças precisam estar mais tempo na escola, local de formação do ser humano. As experiências por meio dos nossos projetos nos mostram que, enquanto a criança ou o jovem está na escola, está longe da exploração do trabalho infantil e buscando conhecimento, preparando-se para o futuro. Para jovens do meio rural, o maior desafio é ter a possibilidade de cursar um ensino médio voltado para assuntos da agricultura e aqui reforço que temos várias oportunidades nos três Estados do Sul do Brasil, que são as Escolas Família Agrícola (já com a possibilidade de Aprendizagem), Escolas Técnicas, Casas Familiares Rurais e o Crescer Legal. É necessário atrair o jovem para a escola e mostrar a importância do estudo e do conhecimento para um futuro digno.

No Brasil, o Congresso está analisando a votação da PEC nº 18/2011, que propõe reduzir para 14 anos a idade mínima para trabalhar. Atualmente, a contratação de adolescentes de 14 a 16 anos só está autorizada na modalidade de aprendizagem profissional. Caso aprovada, quais seriam os impactos dessa mudança para o jovem rural? Qual seria o caminho para minimizar esses impactos?
Marinês – Tenho como princípio que o estudo é imprescindível para a criança e o jovem em qualquer parte e na agricultura não é diferente. Seria uma desconstrução do que está sendo realizado até então. Segundo o Plano Nacional de Peti (Programa de Erradicação do Trabalho Infantil) e Plano Nacional de Proteção ao Adolescente Trabalhador, o trabalho precoce alimenta um ciclo de miséria e destrói sonhos, prejudica a aprendizagem da criança, quando não a tira da escola e a torna vulnerável em diversos aspectos, incluindo a saúde, exposição à violência, assédio sexual, esforços físicos intensos, acidentes com máquinas e animais no meio rural, entre outros.
Incentivar o trabalho e desestimular o estudo e a frequência na escola mantém os altos graus de desigualdade social. O mito de que “só se aprende trabalhando” não é verdade, pois há profissões que o indivíduo precisa estudar muito antes de trabalhar e não é diferente na agricultura. Por isso, para trabalhar enquanto adulto, precisa se preparar enquanto criança e jovem. Precisamos sair do olhar do senso comum e investir mais em informação e dados.

Que medidas são adotadas pela JTI para diminuir o trabalho infantil?


Flávio – A JTI adota uma série de medidas que nos permite fiscalizar as práticas realizadas nas lavouras, além de criar programas que contribuem à erradicação do trabalho infantil no campo. Temos um ciclo de investimento social composto por três etapas, que são as Práticas de Trabalho na Agricultura, que consiste na identificação de riscos aos direitos humanos em toda a nossa cadeia de valor; o programa Arise (Alcançando a Redução do Trabalho Infantil pelo Suporte à Educação), que é um grande laboratório de práticas sociais para prevenção e erradicação do trabalho infantil nas lavouras de tabaco; e o Nossas Comunidades Rurais, que serve como um multiplicador dos resultados das duas etapas anteriores. No Arise, a parceria com a Efasc, de Santa Cruz do Sul e Efasol, de Vale do Sol, viabiliza a aprendizagem rural, permitindo que jovens em situação de vulnerabilidade social venham a ser aprendizes nas instituições parceiras. Essas utilizam a metodologia da Pedagogia da Alternância, que garante a permanência dos jovens nas escolas enquanto eles têm a oportunidade de relacionar os estudos com a vivência protegida e supervisionada no ambiente socioprofissional, que ocorre na propriedade da família ou na comunidade.

Por que as políticas públicas ligadas à Lei de Aprendizagem não são suficientes para evitar que o jovem rural saia das escolas e ingresse precocemente no trabalho?
Flávio – Infelizmente, as políticas públicas de incentivo à educação alcançam jovens somente até seus 14 anos. A partir desta idade, as transformações inerentes ao seu crescimento, tanto na sua compleição física quanto nas suas novas necessidades de consumo, o deixam em situação muito vulnerável ao trabalho precoce. Sabemos que a mudança nas diretrizes das políticas públicas passa por um caminho longo e burocrático e não há tempo para negligenciar a questão. Por essa razão, estamos constantemente focados em intensificar as ações e estabelecer novas parcerias. O Instituto Crescer legal, fundado em 2015, é uma iniciativa do SindiTabaco e suas empresas associadas que compartilhavam da preocupação com as perspectivas – ou a falta delas – para os jovens no campo e sua inserção precoce no trabalho.

Como a aprendizagem voltada ao desenvolvimento desses jovens acaba se tornando a pauta prioritária da ação de combate ao trabalho infantil?


Nádia – Ao se combater o trabalho infantil na faixa etária da adolescência é fundamental ir além da conscientização acerca do conceito de trabalho infantil. É preciso oferecer alternativas, valorizando em primeiro lugar a escola, mas também complementar com outras possibilidades que contribuam com sua preparação para o mundo do trabalho e a geração de renda. É um momento importante de seu desenvolvimento, em que busca inserção em grupos, à medida que está em um processo de desenvolvimento, de transição da infância para a fase adulta, passando, portanto, a assumir novas responsabilidades, inclusive da gestão da própria vida, de seus sonhos, expectativas e escolhas para o futuro. Nesse sentido, a aprendizagem profissional tem se mostrado uma excelente alternativa por meio da Lei da Aprendizagem, que é uma política pública efetiva aqui no Brasil porque contempla requisitos como a frequência escolar e o necessário engajamento do jovem tanto nas atividades escolares como, no outro turno, nas atividades da aprendizagem profissional. Essa vivência representa muito mais do que uma primeira experiência profissional; ela oferece também um desenvolvimento pessoal e de competências comportamentais fundamentais para que ele esteja melhor preparado para o mundo do trabalho. No meio rural há pouquíssimas oportunidades de aprendizagem profissional e o Crescer Legal viu na lei de aprendizagem a grande possibilidade de atuar frente às questões do adolescente no campo, dos filhos dos produtores e trabalhadores na cultura do tabaco.

O Programa de Aprendizagem Profissional Rural e o Nós por Elas estão entre os principais projetos promovidos pelo Instituto. Qual a importância de cada um deles para o desenvolvimento do jovem no campo?
Nádia – O nosso Programa de Aprendizagem Profissional Rural por meio do curso de gestão rural e empreendedorismo tem sido reconhecido em âmbito nacional como uma prática efetiva, com resultados muito promissores, tanto de oportunizar atividades teóricas e práticas no ambiente do curso de aprendizagem, como na sua preparação para que se veja como um cidadão do campo, capaz de fazer a diferença já durante sua adolescência e juventude e que tenha horizontes ampliados em relação às possibilidade de escolha para seu futuro. É dada a ele, inclusive, a possibilidade de enxergar o meio rural como uma escolha promissora, seja empreendendo junto à propriedade da família, visualizando outras formas de gestão da propriedade com diversificação, de gestão de recursos financeiros, consciência acerca dos recursos naturais e melhores condições de trabalho. Diante dessa consciência, ele passa a ser um agente de transformação, individual ou da família e da comunidade como um todo, assumindo posições de liderança, se engajando em atividades comunitárias e associativas, dando continuidade à sua educação formal em busca de cursos técnicos e graduação. Esse desenvolvimento se estende mesmo após a conclusão da etapa de aprendizagem profissional. Há um acompanhamento periódico dos egressos para que possam dar continuidade e implementar seus projetos elaborados durante aprendizagem curso. Essa nova etapa conta também com o apoio de parceiros, como por exemplo da JTI, por meio do programa Jovem Empreendedor Rural. O fato é que os jovens continuam muito próximos do Instituto e de sua equipe, cultivando uma referência positiva na sua caminhada de desenvolvimento.

O Nós por Elas – A voz feminina do campo é um programa próprio do Instituto Crescer Legal voltado às egressas do Programa de Aprendizagem. Com cinco edições, desde 2017, é uma parceria do Instituto com a Unisc. No programa, as meninas aprofundam temas referentes às questões da mulher no meio rural, como questões de gênero, as dificuldades que a mulher e a jovem do meio rural enfrentam no seu dia-a-dia, além de abordar caminhos possíveis para seu melhor desenvolvimento. A busca por qualificação, construção de outros espaços no meio rural, seja como gestora da propriedade familiar, ou como líder na comunidade ou mesmo em instituições voltadas ao campo, como líderes sindicais. Durante três meses, com a mediação de uma educadora social do Instituto, as egressas discutem em grupo e aprofundam temáticas. Também conhecem ferramentas da Comunicação Social por meio de professores e técnicos da universidade parceira. Assim, passam a elaborar roteiros de programas de rádio, identificação de fontes e gravação de entrevistas, gravam os programas no estúdio da universidade. Os boletins produzidos são veiculados em rádios por parceiros como a Afubra e Sindicatos, além de agência de notícias e na Internet. É um programa bastante transformador e multiplicador dessa mensagem das mulheres do campo, por meio das vozes das meninas que são de diferentes localidades do meio rural do Sul do Brasil.