Início Ricardo F. Bastos O cosmo depois da chuva

O cosmo depois da chuva

Hoje andei sobre uma chuva recém caída. Vi as nuvens mais claras que anunciavam frio. Esse inverno que parece tão igual chega para escrever uma história diferente das outras e sobre a qual muito ainda será lembrado. A sensação quase física dessa história que acontece distante de qualquer ilusão de controle. A consciência gelada dos fatos que castigam os olhos, dos quais um tanto nos protegemos e outro tanto enfrentamos. Por cima da máscara e com os óculos um pouco embaciados vejo as casas da vizinhança, todas muito confortáveis. Algumas para alugar, é verdade. Não posso ir longe, mas saboreio cada metro da rua vazia.

Certas chaminés soltam fumaça, indicam a vida interna nas tocas humanas. Não muito longe daqui, o Centro tenta levar algo próximo a uma vida normal, presencial. Um pouco mais adiante, um grande contingente de pessoas segue trabalhando ou buscando o que fazer para não morrer de fome, não sucumbir ao desalento e ao clima agora adverso. Tudo recoberto por uma película gosmenta de medo e apreensão.

Vemos de longe o país, o estado, a municipalidade. O Estado, enfim, como um estranho planeta que hora se afasta, hora se aproxima. Ele parece estar em guerra, como sugere a descontinuidade dos seus efeitos sobre nós e as múltiplas explosões em sua superfície. Na esfera superior, um mandatário desacreditado toma medidas estapafúrdias com as quais pretende acima de tudo a preservação de seu governo que dia a dia se decompõe em múltiplas desonestidades intelectuais e ao final se desnuda: o esqueleto macabro de um poder que, deslegitimado, ameaça aos seus súditos exercê-lo pelo uso da violência.

Abaixo dele, seus vassalos buscam ressuscitar o antigo espírito de uma federação que, mesmo prescrita constitucionalmente, pouco se exerceu de fato. Mesmo assim se desvassalaram, salvaram milhares de vidas contrariando a vontade do poder central, a despeito das avassaladoras condições orçamentárias. Foram seguidos pelos municípios, os pontos mais próximos de nós, que têm a missão de nos olhar nos olhos.

As pestes e as guerras são velhas conhecidas e costumam ser um catalisador histórico, erodindo velhos regimes e oportunizando novas situações. Guardadas as proporções, esta pandemia também não deixará intacto o novelo histórico. Em que pesem os bem intencionados discursos de união diante do inimigo invisível, o que se vê é o recrudescimento da luta. Pois como é da natureza das crises essa também requereu tomadas de decisão em momentos cruciais, onde ficaram expostas as entranhas daqueles a quem coube tal poder. E nem tudo o que se viu foi aceitável.

Sob as chaminés da minha rua algo é urdido, casa a casa, quase até o infinito. Em suas rotinas alteradas. No ecossistema econômico o que pendia caiu, o que hesitava partiu. Novos indivíduos bolinam a História, fermentam o que talvez seja um começo.