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Tribunal de Justiça anula júri de dezembro

Quatro réus condenados e presos em dezembro do ano passado já se encontram em liberdade

Faixa com as imagens das 242 vítimas foi colocada em frente ao Tribunal de Justiça, em Porto Alegre (Foto: Agência Brasil)

A luta incessante dos familiares por justiça referente à tragédia da Boate Kiss, de Santa Maria, ainda não terminou. Em sessão de julgamento exclusiva, com duração de quatro horas e 30 minutos, para analisar os recursos que questionam a sentença do caso, a 1ª Câmara Criminal do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul decidiu, por dois votos a um, pela anulação do júri que condenou os quatro réus em 10 de dezembro do ano passado.

Com o provimento das apelações da defesa, foi revogada a prisão do quarteto. Os sócios da Kiss, Elissandro Callegaro Spohr e Mauro Londero Hoffmann, o vocalista da banda Gurizada Fandangueira, Marcelo de Jesus dos Santos, e o auxiliar do grupo musical, Luciano Bonilha Leão, estavam presos e agora todos estão em liberdade.
O voto do relator, desembargador Manuel José Martinez Lucas, pela rejeição de todas as nulidades apresentadas pela defesa, foi vencido pelos desembargadores José Conrado Kurtz de Souza e Jayme Weingartner Neto. Ambos divergiram do relator ao reconhecer parte das nulidades sustentadas pelos réus. A mais destacada nos votos dos dois magistrados refere-se à formação do Conselho de Sentença.

“Os atos praticados foram atípicos. As regras vigentes foram descumpridas. Foram descumpridas no sorteio de número excessivo de jurados e foram descumpridas na realização de três sorteios, sendo o último flagrantemente fora do prazo legal em 24 de novembro 2021, a menos de dez dias úteis da data da instalação da sessão ocorrida em 1º de dezembro 2021”, pontuou Jayme ao proferir o seu voto.

No mesmo sentido, Conrado falou sobre a não observância da lei. “É preciso zelar para que todos os julgamentos, complexos ou não, obedeçam a lei. Não há dois Códigos de Processo Penal. O sorteio de 25 jurados é o ponto central da questão”, argumentou. Ao desacolher essa nulidade, o relator sustentou que a discussão sobre a realização de mais de um sorteio, sendo um fora do prazo legal, não teria causado prejuízo à defesa. “Ainda que não obedecidas rigorosamente as regras processuais, a subversão é imposta pela complexidade do processo”, observou.

Caso Kiss

Em 27 de janeiro de 2013, a Boate Kiss, localizada na área central de Santa Maria, sediou a festa universitária denominada “Agromerados”. No palco, se apresentava a Gurizada Fandangueira, quando um dos integrantes disparou um artefato pirotécnico cujas centelhas atingiram parte do teto do prédio, que era revestido de espuma, a qual pegou fogo. O incêndio se alastrou rapidamente, causando a morte de 242 pessoas e deixando 636 feridos.

O Ministério Público é o autor da ação penal. Inicialmente, aos quatro réus foi imputada a prática de homicídios e tentativas de homicídios, praticados com dolo eventual, qualificados por fogo, asfixia e torpeza. No entanto, as qualificadoras foram afastadas e eles respondem por homicídio simples (242 vezes consumado e 636 vezes tentado).

Júri

O Caso Kiss foi o julgamento mais longo da história do Poder Judiciário do Rio Grande do Sul. Presidido pelo juiz Orlando Faccini Neto, o júri iniciou em 1º de dezembro com conclusão nove dias após. Os condenados não saíram presos em razão de um habeas corpus preventivo concedido pela 1ª Câmara Criminal do Tribunal de Justiça. Porém, em 14 de dezembro, o presidente do Supremo Tribunal Federal, ministro Luiz Fux, suspendeu a decisão e determinou a prisão imediata dos quatro réus. Dois dias depois, por dois votos a um, a mesma Câmara Criminal do TJRS ratificou o HC preventivo e concedeu em definitivo a liberdade para os condenados. Em razão de nova ordem de Fux, não foram expedidos alvarás de soltura e os réus permaneceram presos. (Com informações da Assessoria de Imprensa do TJ-RS)

Sessão da 1ª Câmara Criminal do TJ-RS na tarde de terça-feira, 2, durou quatro horas e meia (Foto: Juliano Verardi)
Elissandro Spohr, Marcelo de Jesus, Mauro Hoffmann e Luciano Bonilha já foram liberados (Foto: Reprodução/TJ)

Adiamento só prolonga o sofrimento de todos os envolvidos

Ana Souza
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“A anulação do júri não anula a experiência de ter vivido todo o julgamento durante os dez dias em 2021 e ter revivido intensamente aquela noite naquele período. O adiamento do destino não muda o resultado porque a concretude dos fatos segue dando a mesma resposta sobre os responsáveis. Isso só vai prolongar o sofrimento dos sobreviventes, dos familiares e amigos das vítimas, pois nos deixa sem uma resposta e sem o responsável direto ligado ao fato, que sabemos e temos convicção sobre este. Caberá recurso por parte do Ministério Público e que será lançado no STJ (Superior Tribunal de Justiça), buscando a reversão e recorrer desta última decisão.” – Gabriel Rovadoschi Barros, um dos sobreviventes e que atualmente preside a Associação dos Familiares de Vítimas e Sobreviventes da Tragédia de Santa Maria (AVTSM)

(Foto: Divulgação)



“O resultado do julgamento que foi anulado, com certeza, foi uma decepção muito grande para os familiares das vítimas. Se apegaram em uma argumentação que não tinha nenhuma influência direta sobre os jurados. Não aceito, de forma alguma, isto e vamos lutar e com convicção que iremos reverter. Só vamos esperar ser publicada a decisão e iremos entrar com recurso especial no Superior Tribunal de Justiça e com a esperança de mudar esta decisão. O que nos faz pensar é que os desembargadores estão com o ego ‘machucado’ desde quando o STJ mandou os réus a júri popular. Estamos acostumados a estas batalhas e, infelizmente, não teve uma decisão favorável. Estamos nos preparando para arregaçar as mangas e partir para o recurso e, se houver necessidade, recorrer ao Supremo Tribunal Federal (STF) também. Ficamos bem cansados e abalados com o que ocorreu. São quase dez anos de luta, mas pode ter certeza que temos muito gás ainda e ânimo para levar esta luta adiante.” – Flávio José da Silva, que perdeu a filha Andrielle Righi da Silva na tragédia, vítima junto com as amigas Vitória Dacorso Saccol, Gilmara Quintanilha Oliveira, Flávia Torres Lemos e Mirella Rosa

“Lamentável o fato ocorrido, pois traz mais sofrimento às vítimas e aos familiares de jovens que faleceram na tragédia da Boate Kiss. Já são quase dez anos do ocorrido. Espero que a justiça seja feita com brevidade.” – médico Carlos Fernando Drummond Dornelles, que atuou no socorro às vítimas em Santa Maria
“A anulação do júri da Kiss tornou mais longe o caminho da justiça, mas não encerrou a batalha das famílias pela responsabilização dos envolvidos na morte de 242 jovens. Memória e justiça caminham juntas. Até aqui coube tudo nesse processo, menos o esquecimento.” – Jornalista e escritora Daniela Arbex, autora do livro “Todo Dia a Mesma Noite – A história não contada da Boate Kiss”

“O julgamento mostrou um desprestígio ao júri. A sentença de condenação do tribunal foi uma resposta positiva da sociedade ao que aconteceu na Kiss. Agora, a decisão colocou todas as pequenas questões jurídicas acima dos fatos que aconteceram em 27 de janeiro de 2013. Esperamos tanto tempo e agora estamos na estaca zero. Esperamos que o Supremo Tribunal Federal (STF) reformule a decisão dos desembargadores.” – Nestor Raschen, pai do jovem Matheus Rafael Raschen, uma das vítimas da Kiss