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A ciência, Neymar e as ruas

“Há características inesperadas em sistemas complexos, pois os compostos têm propriedades não evidentes em seus componentes. Sistemas vivos, complexos e abertos – dotados de mecanismos como reprodução, metabolismo, replicação, autorregulação, adaptação, auto-organização e crescimento -, exibem propriedades emergentes em nível superior de integração que não existiam em seus componentes isolados.” Assim escreveu Ernst Mayr em seu livro “Biologia, ciência única: reflexões sobre a autonomia de uma disciplina científica” (2004). Mayr foi um dos maiores biólogos do século XX. Tenho pensado em como melhor entender estas palavras de Mayr. Este pensamento tem me remetido a algumas reflexões, vou aqui me ater sobre uma delas, talvez a de maior apelo popular. Falo de um dos sistemas complexos dotado das características acima citadas, na verdade um sistema capilar: os cabelos do Neymar, o jogador de futebol da seleção brasileira. Ao ter sido jogador do Santos Futebol Clube, Neymar se apresentou com muitos tipos de penteados  e cores no cabelo. Embora eu reconheça e defenda o direito dele usar os mais diferentes tipos de cortes de cabelo, sempre achei que a postura de supervalorizar o penteado não é compatível com a condição de ídolo esportivo que ele é.
Há poucos dias o Futbol Club Barcelona, time catalão da Espanha, contratou Neymar, que passou a pertencer a um dos clubes mais importantes do mundo, talvez o com maior número de sócios. É indiscutível o merecimento pelo talento do jogador, mas me chamou atenção uma cláusula do contrato: Neymar não poderia ficar trocando a cor ou penteado do cabelo a toda hora. O que poderia em uma rápida análise ser considerado um detalhe fútil, na verdade é uma cláusula madura e sábia, digna de um dos maiores clubes do mundo, com 114 anos de história e de sabedoria. O FC Barcelona sabe que futebol masculino é para ser jogado com determinação, com raça, com atitude, com cara de homem e jeito de macho. Do pouco que acompanho futebol, consigo observar uma diferença entre a fase do Neymar antes e depois de definir um corte de cabelo. Antes parecia um moleque sem identidade estética, como esperando aprovação ou desaprovação, mas que falassem dele, mesmo que o assunto fosse seus cabelos. Acho que esta falta de identidade encontrava tradução na falta de regularidade de seus jogos, pelo menos os com a camisa da seleção brasileira, que são os que mais acompanho, ainda que nem tanto. Não que cabelos sejam um instrumento importante do atleta, mas reflete um grau de maturidade (ou falta dela) e isso pode implicar em falta de condicionamento emocional, seja para lidar adequadamente com derrotas e vitórias, ou para lidar com a fama.
Um atleta de alto desempenho é feito de muito mais do que aptidão e músculos. Talento é uma palavra que precisa ser conquistada, cada dia tem um preço, e não falo de dinheiro. O resultado da multiplicidade de fatores “resulta numa imprevisibilidade sistêmica, em que o todo é diferente da soma das partes”, diria Ernst Mayr, como disse da biologia. Quando o produto do todo sistêmico é maior que a soma das partes pessoais, pode levar a “características inesperadas em sistemas complexos”, e isso pode impactar nos resultados pela superação, ou pela falta dela. O encantamento da harmonia coletiva consiste em “exibir propriedades em nível superior de integração que não existiam nos componentes isolados”.
Isso tudo, visto de cima, parece a relação entre os políticos brasileiros e o povo que foi protestar nas ruas por muito mais que o preço das passagens de ônibus. Mas há uma diferença: o FC Barcelona protestou contra os cabelos do Neymar e o convenceu a mudar, porque ambos sabem quem vai pagar seu salário. Enquanto isso, em Brasília, ainda procuram um articulador para negociar a trégua das manifestações nas ruas, fazendo de conta que não sabem quem paga seus salários. Fomos às ruas como quem procura uma identidade perdida, mas quando a encontrarmos precisamos saber que era aquilo que estávamos procurando. Em pesquisa biológica, em frente ao espelho ou nas ruas, só podemos encontrar o que sabemos que pode existir. Quando encontrarmos o que procuramos, é importante que também digamos ao mundo não só que era isso que procurávamos nas ruas, mas também que foi isso que conquistamos.