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Justos e Helenas

Para uma menininha é nebuloso pensar na idade certa de gente grande… Principalmente se a diferença vai para lá de meio século…
Longo avental alvíssimo sobre o terno, relógio de bolso, colete e gravata – Dr. Justo – próximo dos setenta, creio hoje -, lembrava meu tio-avô materno, Alcides. O médico – olhos bondosos e calmos, um pouco surdo, dedos gorduchos como ele – cheirava creme de barbear e tabaco. A respiração era quase ofegante… Recordo-me de charutos intatos em um cinzeiro, na mesa do consultório.
Conhecera sua esposa alemã em francês: a língua adotada no convívio. D. Helena – “libchen” para o marido, nascera em Hamburgo. Vim a saber que Justo chamava-a de “queridinha”, no idioma de Goethe e  dela…. Para a criancinha que fui, era um dos nomes secretos da velha senhora que tropeçava nos erres de “querrrido”. Sempre de jaleco e batom: com aparência de quem acabara de sair do banho. Era grandona e aloirada, de cabelos presos e chapeuzinho de enfermeira, profissão exercida na Suíça, onde conhecera o jovem paulistano – José Pedro de Andrade Justo – que passava a limpo seu diploma, no Velho Mundo. Após a graduação na “Casa de Arnaldo”, a Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (USP), a família o mandara estudar na Europa .
O consultório era, por opção, no próprio apartamento. Espaçoso, como os velhos edifícios residenciais da capital paulista. Se não me engano, no Parque D. Pedro II, no centro. Não tiveram filhos. Viviam a medicina com totalidade de alma. Na vivência evangélica de cristãos anônimos. D. Helena auxiliava o velho médico. Fazia curativos, aplicava injeções, instrumentava, quando necessário. Sempre sorrindo. Incrível o armário cheinho de tubos de ensaio! Ganhei um, dela; fiquei fascinada; quebrou na mesma hora; que berreiro, o meu… O médico dizia: “não tem importância, não tem importância, senhorita – tratamento a mim dispensado desde bebê.
As consultas eram minuciosas. Dr. Justo gostava de conversar com seus clientes. Uma fila, na sala de espera lotada… Tinha uma vasta cultura; excelente memória e muita experiência do mundo. Sabia latim, grego, filosofia… Recebia famílias inteiras – quatro, cinco pessoas – pelo preço de uma só consulta. Também dava consultas aos mais carentes e entregava o medicamento com a receita. Dona Helena transmitia às mães noções de puericultura.
Nosso médico de família também atendia nas residências. Chegava, de noitinha, com o próprio motorista – não dirigia – acompanhado da inseparável maleta escura. Nem sei quantas vezes o Dr. Justo foi lá em casa: gripes, sarampo, caxumba…
 Nossas idas e vindas ao Ana Nery, neste agosto de 2013 de tanta expectativa no planeta – será terrível uma outra guerra – foram um mergulho nas memórias hibernadas, há mais de quarenta anos. Testemunhei muitos Justos e Helenas;  nos corredores particulares e do SUS. Enterneci-me. Outros nomes, outras imagens; o mesmo sentido de viver a medicina e a enfermagem. Semelhante responsabilidade e olhos para o alto, no respeito à vida. Que Deus os abençoe a todos, minha gente.

*Monja do Mosteiro da Santíssima Trindade; escritora. [email protected]