Início Opinião O povo nas ruas e a democracia (II)

O povo nas ruas e a democracia (II)

Talvez parte dos manifestantes que está nas ruas não tem clareza sobre os avanços que o país alcançou nas últimas décadas. Longe de estar tudo errado, muita coisa mudou pra melhor. Vejamos dados objetivos.
Nos últimos 10 anos, o Brasil voltou a crescer, depois de duas décadas de estagnação. Nosso PIB avançou em mais de 40% desde 2003, o que possibilitou a geração de mais de 17 milhões de novos empregos com carteira assinada. 
Esse crescimento é diferente daquele do século passado, quando fomos ao mesmo tempo campeões mundiais nas taxas de aumento do Produto Interno Bruto e campeões em aumento da desigualdade social. Crescemos sem distribuir. O Índice de Gini, que mede a desigualdade social, chegou ao topo (em torno de 0,60) nos anos 1990, ficou próximo disso até o início dos anos 2000 (0,59) e começou a cair desde o então de forma constante até os dias atuais (está em 0,52). É o menor nível de desigualdade social já medido no país.
Os fatores que levaram à queda da desigualdade foram estudados pelo IPEA (A Década Inclusiva (2001-2011): Desigualdade, Pobreza e Políticas de Renda, 2012) que concluiu que: o trabalho (emprego e o aumento dos salários) responde por 58%, a previdência por 19%, o bolsa família por 13%, o benefício de prestação continuada (para idosos acima de 65 anos e pessoas com deficiência) por 4% e outras rendas por 6%.
De forma inédita, a renda dos pobres nos últimos anos vem crescendo mais que a dos ricos. Entre 2001 e 2011, a renda per capita dos 10% mais ricos aumentou 16% em termos acumulados, enquanto a dos mais pobres cresceu notáveis 91%. Ou seja, a renda dos 10% mais pobres cresceu 550% mais rápido que a dos 10% mais ricos.
Se os pobres melhoraram, não foi à custa da classe média nem sequer dos ricos. Melhorou a renda em todas as camadas sociais, embora a dos pobres tenha melhorado mais. A ascensão social de mais de 40 milhões de cidadãos à “Classe C” marca o fato notável da “nova classe média”.
Na política há também fatos positivos, como os canais de participação popular, possibilitados a partir da Constituição de 1988, como os Conselhos de políticas públicas, os orçamentos participativos, as consultas populares e as Conferências. Além disso, há novas leis que vêm em favor da transparência, como a Lei de Acesso à Informação, que assegura o direito dos cidadãos a conhecerem os gastos dos governos e inclusive a remuneração dos servidores públicos.
Está tudo certo? Longe disso. Há muitos problemas, e a voz das ruas está cobrando isso. Há gastos mal explicados, desvios, superfaturamentos, corrupção, problemas sérios na saúde, recursos insuficientes na educação, e por aí vai. O problema é outro: é dizer que está tudo errado. Dizer que está tudo errado atinge o governo, mas não é só isso. Vai além, passa a ideia de que a democracia não funciona. No calor das manifestações não se pode perder a razão.
É preciso canalizar a energia das manifestações para aperfeiçoar as instituições democráticas que duramente o povo brasileiro soube construir. É preciso salvaguardar as conquistas: o funcionamento dos poderes, o voto, as boas leis, o modelo de crescimento econômico com distribuição de renda. E é preciso exigir mais. Utilizar mais os plebiscitos, referenduns e leis de iniciativa popular. E avançar em direção a novas formas de participação, como as consultas e votações via internet.
Acredito que as mobilizações vieram para ficar. A era digital, das redes sociais, inaugura uma era de mobilizações de rua. Teremos, talvez, intervalos de calmaria e intervalos de mobilização. Não está garantido de antemão que os resultados dos movimentos sejam positivos. Rebeldes sem causa conduzem ao retrocesso. Rebeldes com causa constroem a democracia participativa do futuro.

* Professor, cientista político