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A ficção do eu

Vamos literalmente partir do princípio: se tomarmos como metáfora a existência humana ainda no útero materno, então nos será possível compreender como se é forjada a ficção do eu. Na vida intrauterina, o bebe é apenas um ser em desenvolvimento que, embora já possua uma consciência vaga do mundo que o rodeia (dos sons, por exemplo), é desprovido de uma consciência sobre o ‘eu’; portanto, jamais terá um flash de lembrança de sua condição intrauterina.
Contudo, na infância, se não lhe é possível ter essa memória, lhe é perfeitamente possível ter uma reminiscência, a qual pode ser entendida, grosso modo, como sendo uma ilusão produzida pelo indivíduo acerca de sua condição de vida mais primordial. Assim, por exemplo, se para a seguinte pergunta, “que sentimento lhe ocorre quando você reflete sobre sua vida intrauterina?”, obtém-se a seguinte resposta, “me ocorre uma sensação de eternidade!”, então devemos subentender que tal sentimento é uma reminiscência produzida pelo indivíduo, não uma lembrança.
Pois bem, se partirmos agora do pressuposto da ‘eternidade’ como reminiscência primeira desse indivíduo, então nos resta fazer-lhe uma última pergunta: “essa ‘eternidade’ em si, lhe ocorre como sendo parte indissociável do seu ‘eu’ (que lhe é inerente, natural), ou lhe ocorre como sendo apenas uma condição fora do seu eu, paradoxalmente temporal e finita?”. Ora, se a resposta for, “sinto que é uma parte indissociável de minha natureza!”, então esse indivíduo tem grandes chances de viver uma vida sedimentada na ficção; pois, senão vejamos: as crianças que têm sua subjetividade abduzida pela ilusão da eternidade (“ilusão” porque a condição mais plausível e real de todo e qualquer ser humano é o seu oposto, a ‘temporalidade’, que pressupõem a impotência, as dificuldades da vida, etc.) buscam incansavelmente, e de modo inconsciente, alento em ambientes e atividades que possam servir como um eterno retorno ao útero materno, por assim dizer.
Ou seja, dado que não se relacionam com sua própria temporalidade, sobre a qual se sentiram ‘jogados’ no ato de seu nascimento (outra reminiscência), essas crianças sentem que seu antigo equilíbrio orgânico é perturbado e violentado.
Na adolescência, essa violência continua a impelir o indivíduo à mesma busca por atividades e ambientes de significantes “intrauterinos”; porém, encontra agora outros meios (tal como o consumismo desenfreado, as drogas, as realidades de ciberespaço, o glamour descontrolado do dinheiro ou da fama, etc.), os quais lhe propiciam essa sensação de eternidade, entendida nessa fase como “eterno prazer mundano”.
Na fase adulta não será diferente, contudo, mais conveniente com suas obrigações (em alguns casos não), o indivíduo necessitará de algum(s) desses seguintes novos estados de vida:
a) que tudo em sua existência cotidiana esteja em ordem, sem que haja qualquer mudança inusitada na sua rotina (pois, aqui, a mudança ‘dói’, pois causa novas preocupações); e se alguma coisa sair da simetria do seu dia-a-dia (alguma coisa estragar em sua casa, o seu carro sair batido, etc.), se sua vida protocolar for de súbito quebrada, então será um “parto” ter que enfrentar os problemas, dado que não aprendeu a aceitar a sua temporalidade – que, como sabemos, produz falhas em muitos aspectos;
b) que em sua instituição de vivência cotidiana (a família, a escola, a empresa onde trabalha, etc.) todos cultivem o respeito, todos consigam aprender o que lhes é ensinado, todos jamais passem batidos, todos saiam ‘curados’ dos males da vida, etc., etc.; e se isso não ocorrer, procurará meios teóricos que fundamentarão novas práticas, as quais perpetuarão sua esperança de que isso ocorra um dia;
c) que seu espírito esteja em harmonia e/ou em total equilíbrio com a natureza; e se, por força de circunstâncias indesejadas, for acometido pelo concreto mais mundano, se recolherá, pois se sentirá profanado, com vertigem na alma.
Nesse viés, ao entendermos que a dificuldade em viver a temporalidade resulta justamente de sua contraparte, da dificuldade em abandonar a reminiscência primordial intrauterina, a ‘eternidade’ (que é sempre prazerosa e anestesiante), então passamos a entender também por que tantas pessoas são servis a uma realidade de invenções fabulosas, por que tantos alimentam as esperanças de que tal realidade é possível na concretude da vida.
É justamente essa condição de frenesi por uma realidade lida nas entrelinhas como ‘perfeita’, que mais tem frustrado, no meu entendimento, a sociedade moderna, que encontra numerosos meios de “retorno ao útero”, meios bem explorados, inclusive, pelo processo da indústria cultural – ou por que será que tantos livros de idealismo barato, que prometem mil e um segredos de atingir o sucesso e a felicidade, estão entre os mais vendidos (?).
Mais uma vez, prezado leitor, pensemos!