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Alegoria carnavalesca

O título era o mesmo. Este. O artigo não era o mesmo. Outro. Eu não era o mesmo. Outro. O vento sim. O vento trazia um recado da lua, o de que aquela não seria uma noite qualquer. O vento queria ser visível e esvoaçava as penas soltas caídas da fantasia de plumagem curta, que ondulava. Ondas de mar distante, balanço intermitente, delicadeza e tempestade. Sempre dia, luz do sol ou de relâmpagos. Energia viva, repicar de tambores e tamborins, como tropel de manada veloz. Nuvem de pó, redemoinho, ventania.
Os confetes colavam no corpo suado como querendo pintar de vários tons, salpicando de matizes aquele brilho, como um diamante lapidado nas faces de muitos lados. Chuva de pétalas. Linhas sem fim. Escultura dos ventos. Sopro dos deuses, os mesmos que a fizeram alada. Luz feito matéria. No ar um revoar de serpentinas se entrelaçando como numa ramagem. Algumas tentavam envolvê-la inteira, e a prender enrolada nas longas tiras de papel, só para depois ver sua libertação. Quando se libertava das amarras em um segundo, estava ali o retrato inteiro da vida. Sem medos.
O rosto pintado da ave que a fantasia, unindo cabelos e face. Plumagem contínua, se confundindo com noite e lua. Braços em movimento pareciam buscar equilíbrio no lago calmo de serpentinas, de cujas águas se agitavam com sua presença. Teriam sido águas do lago ou das que molham retina e íris? Máscara misteriosa emoldurava os olhos brilhantes. Sem miçangas, nem lantejoulas, nem colar havaiano. Para quê mais brilho e cor?
No chão, as marcas de muitos pés, menos os dela. A cada passo o chão sumia para dar espaço. Flutuava na superfície de confetes, ora poça d’água, ora oceano, como mistura de sentidos, sedenta e saciada. Ora musgo, ora floresta, em busca ou sendo buscada por algum leito de águas azuis, até lá onde se encontram mar e céu, espuma de onda e bruma de nuvem.
Ciganos, toureiros, piratas, palhaços. Todos fantasiados a olhar, mas sem a ver.  Olhá-la era água rasa, vê-la era maré cheia. Maré que rouba o ar da noite, e devolve inteiro no dia seguinte, com orvalho e cheiro de madrugada. Quando manhã, o sol ia aos poucos iluminando folha por folha, célula por célula. Parecia querer descortinar mosaico de pele, confete a confete, centímetro por centímetro, poro a poro. Era dona do tempo. Um quadro renascentista, tela e moldura. Saía da pintura, como tinta viva.
Dançava sem tocar o chão. Voa, não voa, voa, não voa… voa! Merece a si própria. Segue a flutuar no espaço que lhe cabe, e fazer dele infinito, o seu infinito. Segue a espelhar outros tantos, a ensinar ser universo, a dar asas e alegria ao vácuo, e a voar sorrindo. Livre. Num azul qualquer, num lago qualquer, sob o céu ora preto sem cores, ora branco de todas as cores juntas. Segue a fazer do branco um arco-íris. Tela inteira. Maior que a arte, que todas as artes juntas. Luz, cordas, gesto, traço, sopro, argila, cortina, pincel, palavra. Palcos? Mundo. Vida-arte, energia viva, voo silencioso, vento e lua. Quando aquele voo, maior que tudo, silenciou alalaôs e ziriguiduns, e no chão não cabiam mais cores, era o vento que tinha um recado para a lua, o de que esta não é uma vida qualquer. O tempo sabe.