Diz-se que o animal a ser abatido para a ceia de Ano Novo não pode ciscar para trás, mas deve fuçar para frente. No entanto, gastamos os últimos momentos do ano que se vai em retrospectivas. Que animal o ser humano!
Solstício vai, solstício vem, um dia o papa Gregório XIII resolveu que o ano deles terminaria e começaria junto ao solstício de inverno. Na verdade, isso de 1º de janeiro parece que começou bem antes dele, no norte da Espanha, onde o “Dia da Circuncisão” foi oficializado como o primeiro do ano. Mas essa é uma longa história, para outro dia. Muitas culturas ainda comemoram a virada do ano em outras épocas, mesmo adotando o gregoriano para efeitos formais. Para nós, do mundo subequatorial cristão, sobrou fazê-lo encostado no solstício de verão, bem no meio da safra. No Brasil, surgiu um trejeito cultural e o ano, que terminava em 31 de dezembro, só recomeçava, pra valer, depois do Carnaval. Pertenço à geração que viu esse traço cultural desaparecer, com poucas exceções. Hoje, não faz mais sentido, trabalha-se, insensivelmente, desde janeiro.
Muito diferente do período entre o Natal e o Réveillon, em que esta cidade mergulha no mais profundo estupor. Tão logo passa o grande feriado cristão, pelas ruas da cidade só perambulam alguns mortos-vivos e pedaços de embalagens, resíduos da euforia de compras do período que o antecedeu, mal descartados. Paira uma sensação pecaminosa sobre aqueles que insistem em fazer coisas, ainda mais a suprema perversão de se buscar um restaurante para almoçar.
É tempo de retiro e circunspecção, cada qual recolhido à sua piscina, ao seu balneário, ao seu ar-condicionado. Quem não tiver acesso a nenhum desses se juntará às demais almas penadas ou circulará por shoppings e supermercados simulando alguma propensão ao consumo. Imagina, logo nestes tempos em que grande parte da população brasileira aderiu à dieta intermitente…
Vês que dou conta de escrever já várias linhas sem a necessidade de percorrer as tragédias e ignomínias que marcaram o período que hora se encerra. 2021, aliás, não pode ser chamado de um ano surpreendente. Foi um ano de colheitas. Por onde cultivou-se Ciência, colheu-se vacina e esperança; já nas lavouras da ignorância, colheram-se perdas pessoais e materiais. Da solidariedade surgiu uma nova chance; do egoísmo, fome e desigualdade. Para dois mil e vinte e dois, no embalo da metáfora, a vontade que dá é de passar um dessecante e começar tudo de novo, à luz do que possamos ter aprendido. Sabemos que não é possível, no entanto. Fora das metáforas as coisas recomeçam do exato lugar onde pararam.