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Ficções

Chove lá fora e aqui outro seriado gasta o meu tempo. “Biohackers”. Uma jovem alemã entra para o curso de medicina na renomada Universidade de Freiburg e aproxima-se do núcleo de pesquisas de uma cientista-professora, visando um acerto de contas que aos poucos emerge da trama. História de jovens universitários com seus ingredientes habituais, triângulo amoroso, festas, etc. Costumava dispensar essa tipologia em benefício de dramas adultos, mas com o esgotamento das possibilidades do streaming acabei invadindo o território das minhas filhas.

Na verdade, já vai um tempo. Desde que assisti o inglês “Educação Sexual” e o espanhol “Elite”, percebi que havia um achatamento no tempo. A presunção de menor complexidade temática de histórias para jovens se mostrou equivocada. Ao compará-las com muitos dos dramas adultos é nestes que encontramos mais ingenuidade.

Estou só no começo da série alemã, mas seu contexto é o de uma sociedade cuja ciência alcançou patamares que a torna capaz de alterar características genéticas e criar intervenções bioquímicas a ponto de sugerir que o ser humano possa vir a ser o seu próprio criador, como retratado em “Homo Deus”, segundo livro da famosa trilogia de Yuval Harari. Obra, ao que tudo indica, citada no próprio nome do projeto desenvolvido pela cientista. A utilização desses recursos, no entanto, ainda é proscrita por limites éticos.

Tudo refere ficção científica, com arquivos genéticos que mapeiam os indivíduos, biologia sintética, vírus geneticamente modificados. E de certa maneira ainda é, mesmo que a ciência atual já tenha condições de fazê-lo. Mas embarcar em um submarino e andar vinte mil léguas, no final do século XIX, ou, em 1982, apaixonar-se por uma replicante eram eventos só concebíveis tempos depois, no futuro daquele passado. Na ficção científica clássica tudo aconteceria no futuro. Depois, percebemos que as coisas não saíram bem assim. Temos o submarino de Júlio Verne, é verdade, já em “Blade Runner”, o futuro era 2019 e até o momento não parece ter surgido uma “Rachel” capaz de confundir os sentidos de um humanoide.

Com “Biohackers” e outras ficções atuais, normalmente distópicas, essas tecnologias já são avaliáveis e se faz necessária uma barreira ética. Mas em algum momento elas engendrarão seu aceite, pois não é comum uma tecnologia desaparecer, exceto pela superação. Quem terá acesso a elas que, em tese, expandiriam os potenciais humanos e prolongariam a vida?

O que o tempo separava agora se distribui no eixo do espaço. Países que têm e países que não têm a tecnologia, grupos sociais que têm conhecimento ou que podem pagar por ele e aqueles que ficarão para trás com seus corpos débeis.

Aqui no sofá, tudo ainda é ficção científica. Evito pensar em conspirações, mas não deixo de olhar com desconfiança para a gata cinza que se aproxima.