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Frágil

Nunca foi seguro estar aqui. Estranhamente iludidos pela rotina andamos pelos shoppings, pelas calçadas, pelos bares. Vamos e voltamos do trabalho e as crianças repetem os mesmos ranços todas as manhãs. Um homem atravessa a avenida de dez pistas e milhões de pessoas se jogam nas estradas em busca de alguns dias de praia. Com meses de antecedência todas as passagens estão compradas e alguém nos espera em um Airbnb. Até o calendário gregoriano está envolvido na trama que nos carrega por entre os meses na firme ideia de que as coisas vão acontecer desta ou daquela maneira.

Tal dia tem futebol. O Inter entra em campo e me vem uma confortável brisa de permanência, a firme convicção que aquilo vai se repetir eternamente na voz do narrador. Lá de vez em quando, muda um narrador. Mas todas as outras coisas seguem e nem percebo do que se trata. Um almoço no domingo e depois a semana de volta nos rostos dos meus colegas. Às vezes muda um colega, mas o prédio é o mesmo e o mesmo vigilante me dá bom dia. Ao sair vejo a mesma praça e nem olho para a magnífica catedral à esquerda, pois sei que ela está ali, parcialmente iluminada pelo sol, que nesta época do ano inclina-se entre o fim da Ramiro Barcelos e a estação antiga, o que significa que a sua posição relativa aos demais planetas, inclusive a Terra, repete o ano passado.

Um dia o dono do café percebe que o cara aquele de barbinha não tem vindo mais e revisa as memórias tentando encontrar algum problema de atendimento. Mas nisso chegam outros clientes para a mesa do canto e o pensamento se evapora. Um livro terminou e ainda está na minha mão. Olho a contracapa, as orelhas, a capa, o índice, como se ainda houvesse algo não lido. E nada do que li está mais na minha mão, a não ser que deseje retomá-lo desde o princípio. Mas ainda tenho o consolo da biblioteca. Olho para a minha esposa que dorme ao lado, apago a luz. Amanhã o mate, o café e quase o mesmo.

Até ontem, estava preocupado com a calha mal feita que permeia umidade pela parede da garagem, a suspensão do Edenilson e do Cuesta. Mas de repente uma peste abala toda a confiança que eu depositava nessa ilha de não acontecimentos em que flutuávamos com relativa segurança. Agora temo por mim e pelos meus, como se não houvesse nada a temer antes. Vejo como era fina a camada de chão que nos sustentava. E não teremos, por um bom tempo, aquele dia comum do qual tanto reclamávamos, quase que por costume, como um casal de velhos que desconhece outra linguagem. Dentro de alguns meses, criaremos, sem qualquer esforço, uma nova normalidade. Mas acho que minha confiança nela ainda levará mais tempo.