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Saúde mental | Conheça histórias de quem superou adversidades

Depoimentos mostram como os participantes conseguiram retornar ao convívio da sociedade

A nova autoestima de Maria também se reflete no coração

Com uma caneca em mãos, saboreando o seu chá de melissa de todos os fins de tarde, Maria Fátima do Nascimento mostra, orgulhosa, sua nova cozinha, mobiliada há poucos meses com o salário que ganha dobrando roupas em uma lavanderia.

A cena revela uma outra Maria, mais alegre, menos dependente, bem diferente daquela que passou anos sob tortura psicológica em uma clínica irregular para pessoas com patologias psiquiátricas. Para entender o atual “’moment’ de Maria”, com quase liberdade total de escolher o que quiser para si, há todo um contexto para ser compreendido, mas que veio a muitas custas e com o auxílio de muitas mãos.

Hoje com 38 anos, a trajetória de sua vida começou com percalços ainda na infância. Após um descompasso familiar, foi levada para uma casa de acolhimento infantil, depois passou pelo Abrigo Feminino e aos 20 anos a levaram para uma clínica em Cachoeira do Sul. De lá, só tem más lembranças e evita falar sobre o assunto porque é só desalento.

Comentou rapidamente que passou por castigos, xingamentos, passou fome, frio, teve até que assumir responsabilidades como cuidar de outros pacientes mais velhos. Saiu de lá há pouco mais de sete anos, assim como outros 23 santa-cruzenses, um trabalho conjunto entre prefeitura, através das secretarias de Saúde e de Desenvolvimento Social, Ministério Público e Coordenadoria Regional de Saúde. “Foi a minha salvação”, conta Maria.
Em Santa Cruz ela passou a morar no Residencial Inclusivo (RI), situado no Vale do Nazaré, destinado a pessoas com deficiência e que tiveram vínculos familiares rompidos.

Foi nesse novo lar, o RI, como é chamado, que Maria recomeçou uma nova história. Acompanhada por profissionais do local e do Centro de Atenção Psicossocial (Caps II) da prefeitura, Maria teve uma recuperação tão meteórica que conseguiu um trabalho na lavanderia do Hospital Ana Nery. E está lá há pouco mais de três anos. “Gosto do serviço. Estou contente. Meus colegas me tratam bem, agora ‘to’ feliz”, conta ela, sempre falando em frases curtas e precisas.
A nova autoestima de Maria também se reflete no coração. Foi no RI que conheceu um moço, o jovem Éder Betoretti, de 24 anos, por quem se apaixonou e casou, rápido assim, e desde o dia 12 de junho, data que marcará para sempre a biografia dos dois, moram juntos em um apartamento.

É lá que Maria, em sua nova cozinha em que sorve o chá de todos os dias, prepara pratos quentes como arroz com frango, “o preferido do meu marido”, diz ela. Éder, por sua vez, tem uma trajetória parecida com a de Maria, mas com algumas peculiaridades: ele é o rei dos abraços. “Ele abraça todo mundo que encontra”, revela Maria. E ele também canta. Adora repetir músicas que falam de Deus. “Foi nas oficinas de música no Caps que aprendi a cantar e até a tocar violão”, recorda.

Ele, assim como a esposa Maria, conseguiu se desinstitucionalizar há dois meses, que é quando o paciente passa a ter autonomia, mas que devido às limitações, continua recebendo todo suporte, inclusive em funções no cotidiano, como as compras em supermercado, por exemplo. Atualmente, além de trabalhar no setor de nutrição do Hospital Santa Cruz, Éder faz curso em Direito do Trabalho, na Unisc. “’To’ gostando da minha nova vida, gosto do trabalho, de estudar, tá tudo muito bom”, diz ele.

Éder trabalha no setor de nutrição do Hospital Santa Cruz e faz curso em Direito do Trabalho, na Unisc

“Trabalhar ‘tá’ me fazendo muito bem”

O final feliz de Éder e Maria em suas lutas pessoais para retornar ao convívio da sociedade tem um enredo similar ao de outra personagem dessa história. O nome dela é Patrícia Kolberg e tem 23 anos. Embora jovem, sua vida já daria um livro com perfil de drama e superação. Por isso já vamos contar o final para entender o início.

Patricia: sua vida já daria um livro com perfil de drama e superação

Atualmente, tem dois momentos que são motivos de celebração nos sete dias da semana para ela. O primeiro deles é quando coloca a touca na cabeça às 7h30 da manhã e dá início à sua rotina de picar tomates vermelhos e outros legumes, no trabalho, na cozinha do Hospital Ana Nery. O segundo, aos domingos, quando reencontra a irmã, Marli, de 19 anos.

Natural de uma localidade do interior de Santa Cruz, Patrícia e seus irmãos menores ficaram sem rumo devido a uma intercorrência familiar. Levados ao abrigo para menores, os demais foram para adoção, enquanto Patrícia e Marli continuaram vinculadas ao órgão. De lá, Patrícia foi para o Residencial Inclusivo (RI) e, após períodos de tratamento pelo Caps, foi inserida no mercado de trabalho. “Eu queria muito trabalhar, consegui uma vaga e tá me muito fazendo bem”, revela.

“Voltar para casa era meu sonho”

Se a vida nova transformou os dias de Maria, de Éder e Patrícia, imagina quando a pessoa pode retornar para os braços da família. É o caso de C.S. , de 42 anos, que voltou a morar em definitivo com a mãe, após duas décadas de separação, entre idas e vindas de internações em casas irregulares de tratamentos psiquiátricos “Voltar para casa era meu sonho”, conta.

A convivência com a mãe está fazendo bem para ela. Tanto que já aprendeu a fazer uma receitas simples, mas que requer certas habilidades que até há pouco tempo eram impensáveis em sua vida. “Agora sei fazer bolo frito. Quando eu ‘tava’ muito doente não conseguia nem pensar nem fazer nada”, relembra.

C. S. estava com uma saúde boa até o nascimento da filha. Ficou mãe aos 20 anos e por conta de uma patologia psiquiátrica que se manifestou após o nascimento, passou por algumas internações. Ficou por anos em uma clínica manicomial em Cachoeira do Sul, retornou a Santa Cruz, quando passou a residir no Residencial Terapêutico (RT), no Vale do Nazaré, moradia destinada para pessoas com transtornos psiquiátricos graves.

Em abril deste ano passou a residir com a mãe, em Santa Cruz. “Depois de muitos anos festejei meu aniversário em casa”, comemora. Duas vezes por semana, um veículo da Secretaria de Saúde busca e leva ela para encontros no Caps II, assim como outros 20 pacientes, onde recebem atendimento e participam de oficinas.

Desinstitucionalização

De acordo com a psicóloga do Caps II, Angela Beatriz Schwerz, seis pacientes moradores dos Residenciais Terapêutico e Inclusivo foram desinstitucionalizados neste ano, etapa em que eles saem dos residenciais. “À medida que o paciente vai tendo mais autonomia, vai se inserindo na comunidade e se tornando cada vez mais independente do suporte profissional”, explica.

Mesmo assim, segundo ela, continuam sendo amparados pelos profissionais do Caps II. “Eles passam a ter uma autonomia monitorada, ou seja, tanto na questão de medicamentos como no cotidiano, compras em supermercado, por exemplo, continuam recebendo todo suporte necessário e fazemos visitas semanais”, relata a psicóloga, que trabalha em conjunto com o o assistente social, Tiago da Rosa, do Hospital Ana Nery.

Psicóloga Angela, do Caps II: “À medida que o paciente vai tendo mais autonomia, vai se inserindo na sociedade”
Fotos: Jaime Fredrich

Em Santa Cruz do Sul, há duas casas de Residencial Terapêutico e duas de Residencial Inclusivo. Os dois lares totalizam 36 moradores. As casas são mantidas pelo município de Santa Cruz do Sul, com incentivos financeiros dos Governos Federal e do Estado, em colaboração com o Hospital Ana Nery (HAN). Além do Caps, os serviços da rede de atendimento envolvem os Centros de Referência da Assistência Social (Cras), Associação de Pais e Amigos dos Excepcionais (Apae) e Centro Dia.

Sobre os investimentos em saúde mental, o vice-prefeito e secretário de Saúde, Elstor Desbessell, explica que o município investe significativamente nessa área. “Além de oferecermos toda a estrutura necessária, com profissionais bem preparados e com atividades terapêuticas e acompanhamento periódico, destinamos recursos para que pessoas com patologias psiquiátricas, bem como suas famílias, sintam-se bem assistidas pelo município”, disse.

Já a prefeita Helena Hermany, reforça que a questão da saúde mental faz parte de seu plano de gestão. “Cuidar da saúde mental das pessoas é essencial, ainda mais em um período pós-pandemia, em que muitas pessoas sentiram-se amedrontadas e fragilizadas. Felizmente nosso município tem condições de oferecer uma estrutura necessária para atender pacientes e seus familiares. E a prova de que estamos fazendo um bom trabalho são estas pessoas que conseguiram, graças ao acompanhamento de nossos profissionais, voltar para a convivência da família e da sociedade”, declarou.

O Caps II

O Caps II localiza-se na Rua Venâncio Aires, 307, no centro do município. Os pacientes são encaminhados para atendimento no local via rede pública, através das unidades de saúde da Atenção Básica, Hospital Santa Cruz, UPA e Hospitalzinho, e rede privada. Mais informações podem ser obtidas pelo telefone (51) 3713-3077.