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Esperança e incerteza: as células-tronco no Brasil

Anvisa alerta para a falta de estudos científicos que comprovem a eficácia e efeitos colaterais

Grasiel Grasel
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Tiago Mairo Garcia
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Dando seguimento à reportagem especial publicada na edição do Riovale Jornal do sábado passado, dia 8 de fevereiro, hoje publicamos a segunda e última parte do material, focado especialmente em mostrar o que são as células-tronco, como está o cenário de pesquisas e como funciona o mercado nacional e internacional de terapias que as utilizam.
Por ser uma descoberta muito recente, o universo de possibilidades que as células-tronco podem trazer é gigantesco, mas este também acaba sendo um empecilho, já que os testes e pesquisas necessários para atestar cientificamente sua eficácia de forma mais ampla são extremamente complexos, demorados e caros. O que surge como argumento favorável, no entanto, são os vários casos de pessoas que passaram por tratamentos e seus familiares apontam melhoras significativas, pelas quais dizem que dificilmente passariam se seguissem apenas com alternativas tradicionais.
É importante salientar que, com esta reportagem, o Riovale Jornal não endossa ou recomenda qualquer tratamento com células-tronco que não seja reconhecido pela Anvisa. O material aqui divulgado tem o único objetivo de mostrar que existem pesquisas e avanços na área que mostram um potencial animador para familiares de pessoas com doenças degenerativas, mas ainda não são consideradas o suficiente para as entidades de controle responsáveis.

O que são células-tronco?

São células que têm a capacidade de dar origem a vários tipos de células que formam os diferentes tecidos do corpo humano. Por essa característica, as células-tronco são capazes de regenerar órgãos e tecidos. Existem várias formas de obter células-tronco, como: no cordão umbilical, medula óssea, tecido adiposo e da polpa do dente de leite.
Existem três principais fontes de células tronco:
– As embrionárias ou pluripotentes, que possuem a capacidade de se transformar em qualquer tipo de célula adulta, elas são encontradas no interior do embrião, durante o estágio conhecido como blastocisto, que ocorre de 4 a 5 dias depois da fecundação. O corpo humano possui aproximadamente 216 tipos diferentes de células, as embrionárias podem se transformar em todas elas.
– As adultas ou multipotentes, que são obtidas principalmente da medula óssea e no sangue do cordão umbilical, mas também são encontradas em todos os órgãos do nosso corpo em alguma quantidade, para que seus tecidos sejam renovados ao longo da vida. Elas podem se dividir e gerar uma nova célula idêntica ou mesmo uma programável. Embora não sejam tão versáteis quanto às embrionárias, elas tendem a possuir um potencial de adaptação.
– As induzidas ou de pluripotência induzida (sigla iPS), que foram produzidas em laboratório pela primeira vez por Shinya Yamanaka, em 2006, um pesquisador japonês especialista em células-tronco. Em um experimento, ele reprogramou as células da cauda de um camundongo e elas voltaram a se comportar como se fossem embrionárias. Mais tarde, em 2007, um experimento parecido foi tentado com células humanas da pele, que demonstraram capacidade de também se tornarem embrionárias.

O pediatra Carlos Ayoub é CEO da CCB, empresa especializada em conservação de células-tronco

Anvisa alerta sobre terapias

Um documento publicado no site da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), traz uma série de explicações sobre o que são as células tronco, como são utilizadas em procedimentos médicos no Brasil, quais tipos de usos experimentais são feitos aqui e quais são suas recomendações sobre os cuidados com tratamentos não reconhecidos.
A agência frisa na cartilha que as pesquisas são complexas e, portanto, necessitam de uma grande variedade de estudos de médio e longo prazo para comprovar a segurança e eficácia de tratamentos médicos. Ao participar de um protocolo de pesquisa clínica no Brasil, ela afirma que todo o processo deve ser realizado “de forma gratuita, voluntária e esclarecida”. Ao final do estudo, é obrigatório que o patrocinador da pesquisa forneça acesso gratuito aos melhores métodos de prevenção de doença, de diagnósticos e terapêuticos comprovadamente eficazes, os quais costumam ser bastante caros.

Dentre as preocupações listadas pela Anvisa no que diz respeito às terapias com células-tronco, bastante comuns em países asiáticos, mas também presentes no Paraguai e no Panamá, estão:
• Possíveis impactos de procedimentos invasivos
• Falta de evidências científicas que comprovem a eficácia
• Elevados valores cobrados dos pacientes por tratamentos não comprovados
• Ausência de notificação dos eventos adversos
• Necessidade de monitoramento de efeitos tardios
• Propagandas inadequadas e enganosas
• Possíveis prejuízos físicos, psicológicos e financeiros aos pacientes

A Anvisa ainda alerta que práticas irregulares ou ainda em processo experimental costumam ser apresentadas para pacientes e familiares como “promessas irreais de cura e melhora de doenças”. Tais práticas seriam potencialmente perigosas para a saúde e, caso o paciente suspeite que a atuação de um profissional ou estabelecimento é ilegal, a agência recomenda que seja feita uma denúncia.
Outro assunto que a cartilha aborda são os bancos de sangue de cordão umbilical e placentário que são permitidos no Brasil, para que células-tronco obtidas através de coleta destes tecidos sejam conservadas por criogenia. No entanto, a Anvisa alerta que não possuir este material armazenado não exclui ninguém de ter acesso às terapias caso um dia elas sejam permitidas no país, pois existem outras formas de conseguir a matéria prima da medicina regenerativa do futuro. Com informações de: Células-Tronco: O que é preciso saber? – Cartilha Anvisa

Potencial tratamento contra sequelas de AVC?

Em um estudo publicado em janeiro de 2019 na revista “Nanomedicine: Nanotechnology, Biology, and Medicine”, um grupo de pesquisadores conseguiu diminuir lesões provocadas por isquemia cerebral (diminuição ou ausência de fluxo sanguíneo para o cérebro) em camundongos. O artigo, que tem como primeira autora Laura Zamproni, médica neurologista no hospital da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), tem sido utilizado como uma potencial prova de que células-tronco talvez possam recuperar vítimas de acidente vascular cerebral (AVC) isquêmico, quando uma veia do cérebro é bloqueada (trombo) e a parte do cérebro que deixa de ser irrigada tem morte de neurônios.
Extraídas da medula óssea dos animais, as células-tronco mesenquimais – que originam tecidos – estavam em um suporte feito de um material desenvolvido na Unifesp que, não só permitiu a sobrevivência e a multiplicação delas, como também impediu que migrassem para outras regiões do cérebro, como é comum ocorrer quando implantadas diretamente na lesão.
A técnica pode ajudar na recuperação de vítimas de acidente vascular cerebral (AVC) isquêmico, quando uma veia do cérebro é bloqueada (trombo) e a parte do cérebro que deixa de ser irrigada tem morte de neurônios. A isquemia pode causar sequelas graves, como perda de movimentos ou mesmo levar à morte.
As fibras contendo as células-tronco foram colocadas sobre a lesão dos roedores e acompanhadas por 30 dias. Testes mostraram que elas produzem uma citocina que atrai as células para a região afetada e, além disso, produzem mais proteínas chamadas integrinas, que fazem as células-tronco aderirem à área em que estão.
Os pesquisadores agora pretendem testar a técnica com células-tronco em traumatismo crânio-encefálico, em que há perda de parte do cérebro. “Hoje, quando se perde massa encefálica, controla-se a hemorragia e se faz uma cirurgia, mas o que perdeu está perdido. Não tem como melhorar. Esse poderia ser um novo tratamento”, disse Zamproni em entrevista à assessoria de comunicação da Unifesp.
Para isso, os pesquisadores querem usar bioimpressão, recriando a parte perdida do cérebro no mesmo formato com uma impressora 3D. Para isso, buscam encontrar outro biomaterial que possa também ser moldado, além de ter as propriedades do ácido polilático. Fonte: Escola Paulista de Medicina/Unifesp

Ilustração mostra as principais fontes de onde se obtém células-tronco

Pediatra defende maior liberdade para tratamentos

O transplante de medula é reconhecido e autorizado pelo governo brasileiro desde 1979. Ele é capaz de tratar leucemia e mais de 80 tipos de doenças do sangue, no entanto, as possibilidades de explorar um mercado de terapias acaba por aqui. Caso o paciente decida ignorar as recomendações da Anvisa e apostar no potencial das células-tronco, só é possível buscar alternativas fora do Brasil, nas mais de 900 empresas catalogadas em países como o Paraguai, México, Panamá e, especialmente na Tailândia, Japão e China, região onde fica atualmente a maior concentração de clínicas especializadas.
O médico pediatra Carlos Alexandre Ayoub (CRM 19202 SP) é CEO do Centro de Criogenia Brasil (CCB), empresa que trabalha desde 2003 com coleta e conservação de células-tronco do sangue de cordão umbilical e, mais recentemente, de outras fontes. O processo que preserva a integridade das células é a chamada criogenia, uma espécie de congelamento capaz de mantê-las em perfeito estado e prontas para serem reativadas quando necessárias, caso a família queira investir em algum tratamento.
Ayoub é um ferrenho defensor de uma maior liberdade para uma ampliação mercado de terapias com células-tronco no Brasil, pois, segundo ele, já existe uma série de estudos em nível mundial que atestam sua eficácia. O único motivo para a Anvisa continuar restringindo os tratamentos seria a exigência de testes mais aprofundados, que garantam que eles não causam efeitos colaterais ou negativos no paciente, no entanto, eles são complexos, caros e geram situações delicadas. 
“Fazer estes testes é complicado. Por exemplo, em um caso de Esclerose Lateral Amiotrófica (ELA), é necessário oferecer o remédio para 10 pacientes e um placebo (remédio falso, sem efeitos) para outros 10. Ou seja, você está testando para uma doença como a ELA, que mata em dois anos, dando um placebo. Estes são trabalhos com um custo muito alto, que são muito difíceis de executar especialmente aqui no Brasil e, enquanto eles não são apresentados, a Anvisa não libera o tratamento e não aceita trabalhos feitos no exterior, que já atestam a segurança da terapia com células-tronco.”
Um dos problemas que Ayoub vê na proibição de tratamentos e medicamentos é o excesso de judicialização causada por ela. Como algumas terapias já possuem estudos que atestam a favor de sua eficácia, muitas famílias os utilizam em processos judiciais exigindo do Estado um financiamento para serem feitos, especialmente se tratando de crianças que buscam uma cura para doenças degenerativas. O valor liberado em uma ação judicial é aportado justamente do Sistema Único de Saúde (SUS), o que onera pesadamente os cofres públicos.
De acordo com o último relatório de gestão do Ministério da Saúde, em 2018 o governo federal gastou R$ 1,31 bilhão em judicializações de pedidos de fornecimento de medicamentos e insumos raros, mais de R$ 300 milhões a mais em relação ao ano anterior (R$ 979 milhões), uma curva ascendente que cresce a cada ano.
O pediatra afirma que tem conversado com o governo e que o ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta, vem trabalhando para encontrar formas de diminuir o nível de despesas com judicialização através de uma maior liberação de medicamentos e tratamentos experimentais. No entanto, existe uma forte resistência de entidades representativas da classe médica-científica que ainda os veem com muito ceticismo e, da mesma forma, um assunto tão complexo deveria levar anos de debate para obter avanços significativos. Ele acredita, portanto, que não veremos um mercado mais livre de terapias com células-tronco no Brasil tão cedo.