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Laço afetivo acima do vínculo sanguíneo

Relação estabelecida há mais de dez anos entre Schünke e
sua filha afetiva Eunice é de amor e companheirismo

Luísa Ziemann
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Já faz algum tempo que o conceito e significado de família vem se modificando. Ou melhor, se multiplicando. A imagem de uma tradicional, como a que se via nos comerciais de margarina até alguns anos atrás – com mãe, pai, filhos e cachorro –, vem dando lugar às pluralidades que esse termo propõe. Os vínculos sanguíneos deixaram de ser base fundamental para caracterizar uma família e deram lugar a algo mais importante: os laços afetivos. Hoje, expressões como “família anaparental” e “multiparentalidade” são cada vez mais comuns.


Uma família tradicional ou matrimonial é, normalmente, formada por pai e mãe, unidos em matrimônio, e um ou mais filhos, compondo uma família nuclear ou elementar. Na Constituição Brasileira, porém, família é um termo muito mais abrangente, pois considera diversas formas de organização baseadas na relação afetiva e na convivência. Entre essas transformações mais recentes pelo qual passou o conceito de família está o surgimento da multiparentalidade.

De acordo com a advogada Juliana Lopes Bandeira dos Santos Wincke, do escritório Lawisch Alves Advogados, a multiparentalidade resulta da ligação afetiva entre as partes, podendo ser considerada no âmbito paterno ou materno. “Significa a formação de família por laços biológicos e também por laços afetivos, tendo como base a afeição que as pessoas têm umas pelas outras, ressaltado especialmente o sentimento de amor e zelo de forma recíproca”, explica Juiana, que é pós-graduanda em Direito de Família e Sucessões. Pode-se citar, como exemplo, uma pessoa que tem um pai por laço biológico e um pai por laço afetivo, devendo o sentimento de afetividade entre as partes ser concomitante.


Juliana salienta que há um crescimento significativo nos casos de multiparentalidade nos últimos anos, especialmente a partir do reconhecimento dessa condição de forma jurídica, pelo Tema 622 do Supremo Tribunal Federal. “Isso possibilitou juridicamente ao genitor biológico e ao genitor afetivo a coexistência deste tipo de vínculo familiar, havendo ou não o regular registro. Hoje, é notório que a formação de uma pessoa para com os seus vínculos familiares não se define apenas a partir do ponto de vista biológico, mas, sim, se constrói a partir dos sentimentos nutridos pelos participantes desta relação”, esclarece.


A advogada reitera que, apesar do conceito de multiparentalidade ser cercado de desafios a serem enfrentados, sobretudo na esfera legal, na prática essa forma de família já existe há muito tempo. “Sua regularização é que é recente. É possível fazer o reconhecimento legalmente através de processo judicial ou procedimento extrajudicial, preenchidos os requisitos do Provimento 83/2019 do Conselho Nacional de Justiça”, explica.


Com o reconhecimento legal, o filho passa a ter o nome do pai socioafetivo em seu registro de nascimento, juntamente com o do genitor biológico. “Ele começa a ter todos os direitos legais que um filho natural possui, como ver atendidas todas as suas necessidades básicas, receber afeto, cuidado e proteção daquele seio familiar, assim como todos os direitos hereditários e sucessórios”, enumera Juliana. Da mesma forma, o reconhecimento da paternidade ou maternidade socioafetiva inclui o cumprimento de deveres, tal como para com um filho biológico.

Relação de afeto mútuo

No caso de Flávio Schünke e sua filha afetiva Eunice Costa, o zelo, o cuidado e o afeto foram os pilares essenciais para a formação de uma relação sólida – digna de pai e filha. De acordo com o funcionário público, tudo aconteceu de maneira muito natural, logo após ele conhecer sua esposa e mãe de Eunice, Josiane Erdmann. “Fazia uns dois meses que havíamos nos conhecido. A Eunice tinha apenas seis anos. A primeira vez que saímos juntos foi em um verão, quando fomos acampar num balneário da região”, recorda.


Sem forçar um contato mais íntimo ou a criação de uma relação mais próxima, o pai afetivo lembra que, no começo, a menina foi um pouco receosa. “Era normal, uma vez que eu era uma pessoa estranha para ela”, explica. Mas não demorou muito para o laço se estreitar. “Eu sempre tive muita paciência, e com ela não foi diferente. Fui dando tempo ao tempo e me aproximando devagar. Ela foi se rendendo e criando confiança em mim e, assim, a cada encontro na casa da Josi, ela vinha a meu encontro com sorriso no rosto, demonstrando que eu era bem-vindo. Lembro que ela gostava muito de brincar e essa atenção eu sempre dei. Talvez tenha sido a razão de tê-la conquistado”, reflete.


O carinho, a amizade e o ótimo convívio perduram até hoje, mais de dez anos depois de se conhecerem. Hoje, Schünke e Eunice se reconhecem como pai e filha, e a relação é tão forte que não restam dúvidas do amor envolvido. “Diria que é até mais forte do que uma relação comum entre pai e filha, pois temos um carinho mútuo muito grande entre nós. Um trata o outro como ‘hertzia’ e ‘hertzinha’, que significam ‘coração’ e ‘coraçãozinho’”, conta o funcionário público, que não possui filhos biológicos e que não descarta a possibilidade de realizar o reconhecimento da multiparentalidade de forma jurídica. “Se for da vontade dela, com certeza.”