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Vida Boa

“A minha proposta tem sido que a posse de sentido na vida surge do engajamento em atividades valiosas”. Essas são palavras de Susan Wolf, filósofa americana que dedicou um ensaio à vida boa. Muitos se questionam sobre ‘o que é ter uma vida boa (?)’, às vezes em frases como “não me sinto feliz nesse emprego”, ou “sinto-me vazio nesse relacionamento”; outras vezes, e de forma mais sintomática, no recolhimento melancólico de um silêncio diário, ou, ainda, no deixar-se levar sem rumo pelas circunstâncias da vida, dado que o horizonte não é visível – ou seja, vidas marcadas por uma crise existencial que pressupõe a falta de sentido.
Contudo, o que define o ‘sentido’ para a vida? A afirmação de Wolf deixa a questão em aberto: existe alguma atividade genuinamente valiosa, que garanta a posse de sentido na vida, ou as concepções em torno da validade são subjetivistas? Jacques Lacan, um fecundo psicanalista francês, propõe-nos uma resposta a esse tipo de questionamento ao afirmar que “o desejo é a essência da realidade”. Nessa via, podemos supor que a validade genuína de uma atividade dá-se na relação de concordância que estabelece com o nosso desejo, não um desejo qualquer, mas O desejo, aquele definidor de nós mesmos. Lacan explica que todos temos um algo peculiar que nos falta e que é causa dos nossos demais desejos cotidianos/objetais (um carro novo, uma promoção, viagens, etc.). Chamou a esse algo de “objeto-causa de desejo” ou “objeto a”.
Um exemplo claro ocorre quando alguém se pergunta “por que tenho tanta ânsia por estudar? Não me basta uma graduação, um mestrado, nem mesmo um doutorado… qual será o meu limite?”. Ora, o estudo, a graduação, o mestrado, o doutorado, etc., são desejos cotidianos/objetais que muitos de nós temos. Porém, qual será o objeto-causa desses desejos? Ou seja, qual será O desejo (objeto a) por trás desses desejos? Será a ânsia pelo saber? Pelo poder? Ou algo muito mais complexo? A resposta é sempre de ordem não generalizante, já que cada indivíduo carrega a sua no âmbito de sua própria singularidade, e não é nada fácil encontrá-la, dado que, segundo Lacan, ela se esconde no mais recôndito de nosso inconsciente. Todavia, é mister que a encontremos, pois quanto mais oculta, mais propensos estaremos à melancolia.
O filósofo esloveno Slavoj Žižek faz uso de um termo interessante para definir o status do nosso “objeto-causa de desejo”, qual seja, anamorfose: “o status do ‘objeto a’ é o de uma anamorfose. Uma parte da imagem que, olhada bem de frente, aparece como um borrão sem sentido, assume os contornos de um objeto conhecido quando mudamos de posição e olhamos a imagem de viés. A ideia de Lacan é ainda mais radical: o objeto-causa de desejo é algo que, visto de frente, não é coisa alguma, apenas um vazio: só adquire os contornos de alguma coisa quando visto de esguelha”. (ŽIŽEK, 2010) Cito, nesse sentido, um exemplo particular: sempre me questionei sobre por que insisti na profissão de professor, uma vez que me foram apresentadas outras oportunidades em áreas bem distintas, mas muito promissoras financeiramente. Quando me questionava, eu o fazia, na verdade, em busca do “objeto-causa de meu desejo”. A resposta me veio anos mais tarde: ao escolher ser professor, o fiz com total ‘sentido’, pois descobri que sou demasiadamente apaixonado pelo conhecimento (meu “objeto a”), de forma que o debate teórico e conceitual me causa um enorme prazer – e isso consigo granjear em sala de aula.
Está claro, portanto, de acordo com a simbiose entre a afirmação de Wolf e os pressupostos de Lacan, que a posse de sentido na vida só nos é possível na medida em que seguimos o nosso “objeto-causa de desejo”, ou seja, O desejo, porque é o mais importante e precioso; é ele que define em muito nossa existência. Mas, para tanto, temos que nos esforçar em tirar o seu véu pela via do olhar oblíquo (tal como supracitado), que quer dizer, grosso modo, ver nas entrelinhas de nossos anseios por bens materiais, realizações profissionais, relacionais, etc., qual o “objeto a” que se esconde por trás dessas coisas que tanto procuramos. E quando o acharmos, não o teremos de todo, dado que é inesgotável, mas percorreremos incansavelmente seu caminho, propiciando-nos, assim, uma relação mais íntima com nossa própria existência e, portanto, uma vida dotada de sentido.