Sara Rohde
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Muitos artistas têm a influência dos pais, da família ou amigos quando criança. Seja na música, nas artes cênicas, ou até mesmo na literatura, mas com a Sandra, compositora nativista que descobriu a paixão pela arte ainda pequena, foi diferente. Isso porque ela cresceu no interior, onde havia pouco acesso a novos horizontes, um mundo em que a rotina era brincar com os irmãos e ajudar os pais na lida do campo.
Natural do interior de Encruzilhada do Sul, Sandra Luz de Souza levava uma vida simples. Passou a infância ao lado dos irmãos e com a imaginação fértil explorava a fazenda e criava brincadeiras. Começou cedo a ajudar em casa, cuidava das crianças, dos cavalos e ovelhas, fazia também o trabalho pesado. O seu pai era meeiro e dividia as colheitas com o dono das terras onde vivia a família. Ele era agricultor, capataz, empreiteiro de granja, desenvolvia diversas funções para sustentar os filhos.
A necessidade fez Sandra começar a trabalhar fora. Aprendeu a cozinhar ajudando uma senhora e foi tentar a vida em Porto Alegre, ganhar um salário melhor para poder dar assistência aos pais e irmãos. A jovem deixou a vida interiorana com 19 anos e partiu para a cidade grande para trabalhar com uma família. Lá ela fazia de tudo, desde as refeições, a limpeza, cuidava dos filhos dos chefes. O trabalho lhe rendia dois salários. “Eu assumia tudo e não sei como conseguia, mas eu precisava ganhar bem, pois tinha que ajudar a família com o dinheiro”, contou. Depois trabalhou em outras casas porque a confiança que passava lhe rendia referências.
Mal sabia ela que a sua vida poderia mudar de uma hora para outra, e mudou. Sandra voltou para Encruzilhada, quis visitar a família. Lá, conheceu um viúvo, casou e engravidou, porém o relacionamento não deu certo.
Sandra teve que assumir a filha sozinha, uma batalha que a maioria das mulheres enfrenta. “Não tinha quem cuidasse da menina e precisava trabalhar para sobreviver. Onde me ofereciam serviço eu ia, trabalhava por comida, por leite para minha filha”. A mãe solo suou muito para a pequena não passar fome, foi difícil, até que a sorte bateu em sua porta e um sonho a fez ganhar muito dinheiro. “Sonhei com São Jorge e apostei, devia ter guardado o número porque ganhei um bom dinheiro. Paguei o hospital que estava devendo, os médicos, me virei um bom tempo”.
Quando começou a apertar a situação financeira voltou para a capital. Achou que ganharia dinheiro como a primeira vez, mas não imaginava que com filho seria diferente, mais difícil. Sozinha, não tinha com quem deixar a criança para poder trabalhar e não conseguia creche naquela época. Chegou a deixar a filha com algumas pessoas, mas as recordações não são boas.
MUDANÇA DE VIDA
Tudo acontece como deve ser e uma amiga de Sandra, natural de Santa Cruz do Sul, recomendou a cidade, disse que era ótima de morar e criar os filhos, que havia creche e trabalho. “Vim visitar minha amiga aqui em Santa Cruz e não deu outra, vim de mala e cuia”, relembrou.
Sandra passou por algumas dificuldades até se firmar e conseguir um lugar fixo. Chegou a morar em uma casa que não tinha água nem luz, os banhos eram de bacia. Vendia bolos e doces para juntar dinheiro e poder comprar um terreno. “Consegui achar um terreno e parcelei, mas cheguei a tirar comida da boca para poder pagar a dívida. Calçado eu nem comprava, eu remendava. Minha filha ganhou roupas da caridade e assim fomos nos virando”, contou.
Uma mulher humilde, batalhadora, que sozinha conseguiu sustentar a filha. Passou aperto, mas os sonhos não a deixaram desistir. Arrumou um emprego como faxineira e hoje faz 27 anos que trabalha com uma família que considera como sua.
ARTE
O dom da arte nasceu com Sandra, como ela mesma diz. Mas o primeiro contato com instrumentos musicais foi ouvindo o pandeiro feito com tampa de garrafa e a rabeca feita com corda de rabo de cavalo. Depois conheceu a gaita. Eram os sons predominantes quando havia festa de aniversário. “Eu era apaixonada pelos sons que saiam dos instrumentos e dizia para os meus pais: preciso arrumar dinheiro para comprar uma gaita, porém eu ouvia que tocar gaita era a coisa mais estúpida, que só homens podiam tocá-la”. Sandra, inconformada com a resposta, improvisava qualquer objeto para que saísse algum tipo de som. Ela colocava pedras dentro de latinha e saia cantando todas as canções que ouvia.
Com 12 anos vendeu o seu terneiro e com o dinheiro pôde comprar um radinho à pilha. Ela ouvia Bertussi, Teixeirinha, Gildo de Freitas, eram muitas músicas. O universo da cultura a deixava impressionada e o costume de ouvi-las fazia guardar os versos na cabeça. Contudo, somente na cabeça, pois a artista não era alfabetizada.
Sandra não sabia ler e escrever. Ela montava as frases com as palavras escritas em rótulos de embalagens e jornais. Os versos que inventava ficavam guardados na memória juntos com as músicas do radinho. Quando todos estavam decorados, se apresentava à família e assim ela expressava o seu lado artístico.
Aprendeu a ler graças à nora de um dos fazendeiros que não mediu esforços para ensinar as crianças da família. Depois passou a frequentar uma escola de verdade, era a mais velha da turma. Completou os estudos do primário em dois anos, pois já havia aprendido o suficiente com sua primeira professora.
Quando se mudou para Porto Alegre sentia dificuldades em ir à escola todos os dias, então sempre que voltava do trabalho, à noite, colocava em prática a leitura e a escrita. Nos dias que podia ir à aula, o professor lia suas redações para a turma e se impressionava. “Os professores diziam que não era uma redação e sim um poema, porque eu enfeitava, colocava palavras bonitas no texto”, contou.
Em meados de 1977 escreveu sua primeira milonga intitulada “Coração Doente”. E não parou mais. Comprou alguns violões e hoje já conta com mais de 30 músicas gravadas num CD, todas com partituras e registradas no Escritório de Direitos Autorais. As suas músicas têm o acompanhamento de Cristian Agnes e Lucas Kist. Além é claro, da sua filha, Tatiane Souza Cardoso, que herdou o dom artístico da mãe.
Cantar e compor se tornou mais que um hobby, algo muito especial, um amor. “Eu não bebo, não fumo, fico em casa fazendo minhas letras. Para mim isso significa tudo na vida. A música é como um bálsamo que me passa energia e me faz sonhar”, relatou.
Atualmente a artista é integrante do grupo Missa Crioula do CTG Lanceiros de Santa Cruz. Por cinco anos participou também do Terno de Reis. A vida na música ainda lhe rendeu vários troféus e mais de 10 certificados. Tem participação também nos livros da escritora Marli Silveira.
Sandra, uma mulher que mesmo nas dificuldades não perdia a esperança por dias melhores. Mesmo com fome, tinha a arte como um dom e como uma forma de ser feliz. Hoje ela leva a vida com uma história marcada em suas veias, uma história de exemplo e superação. Uma história que a ensinou a melodia, a trilha sonora de seu caminho, que fortaleceu a tradição em seu coração, pois lugar de mulher é onde ela quiser.














