Entendo que a medicalização de crianças e adolescentes deva constituir um dos temas centrais e emergentes no debate entre família e escola, no sentido de esclarecer:
I. até que ponto o indivíduo entende a si mesmo enquanto sujeito definido em seu aspecto biológico peculiar, mediante um biopoder normalizador que lhe prescreve novas maneiras de ser e de viver;
II. até que ponto podemos concluir que o resultado proveniente dos efeitos de prescrição diagnóstica, de classificação de doenças (Transtorno do Déficit de Atenção e Hiperatividade, Transtorno de Oposição e Desafio, etc.) pelos seus sinais comportamentais aparentes (desatenção, inquietude, impulsividade, etc.), deve ser entendido no nível dos vínculos socioeducacionais enquanto um dispositivo produtor dos processos de normalização dos sujeitos.
Tratar-se-ia, nesse sentido, de supor que existe um poder atrelado a certos mecanismos de normalização, que modelam o indivíduo, no sentido de o fazer perceber a si mesmo, e mesmo de querer a si mesmo, como um ser indissociável do que é prescrito enquanto normalidade.
Ora, não raras vezes ouvimos de crianças e adolescentes um dizer, num tom de normalidade, bioconfigurado acerca da visão que têm sobre si mesmas: “não sou capaz de realizar essa atividade tal como os outros, pois tenho Transtorno Obsessivo Compulsivo”, ou então, “essa avaliação escolar está além das minhas capacidades cognitivas, segundo o que consta no meu laudo médico” – entenda-se aqui, que os diagnósticos da medicina são legítimos, uma vez que são comprovados cientificamente. Sendo assim, devem, sem sombra de dúvida, pesar sobre os saberes e os fazeres da educação. Contudo, entenda-se, outrossim, que tais diagnósticos não podem formar um poder normalizador e/ou formatador das práticas pedagógicas, pois, se formarem, os pressupostos básicos da educação seriam abduzidos da compreensão vigente (a qual subentende o olhar atento e cuidadoso sobre a singularidade do sujeito, compreendido no terreno da heterogeneidade) e lançados sobre a tendência indutiva de generalizar os comportamentos em função do que é ditado pelo diagnóstico médico.
Em base nisso, quero chamar a atenção do leitor para alguns dos “diferentes modos pelos quais, em nossa cultura, os seres humanos tornam-se sujeitos” (FOUCAULT, 1995): em que medida as relações de poder biomédico na ambiência escolar podem ser produtoras de sujeitos que passam a diferenciar a si mesmos (em relação aos outros), não somente pela sua singularidade subjetiva, mas, também (e algumas vezes, até, principalmente) pela sua singularidade biológico-neurológica? Em outras palavras, até que ponto uma criança medicalizada considera a sua própria existência como sendo “anormal”, em comparação às de outras crianças não medicalizadas? Nesse viés, poderia um pai ou mesmo um professor justificar sua dificuldade de relacionamento com uma criança, em função de que essa não toma corretamente os seus remédios? Ou então, pode um pai ou um professor justificar que uma criança não consegue aprender, justamente porque sofre de alguma disfunção neurológica, ou então porque interrompeu com a medicação? Claro que pode; desde que suas conclusões sejam refletidas criticamente e devidamente compartilhadas por ambos os saberes, médico e pedagógico, pois se assim não ocorrer, parece-me que se estaria criando, mesmo que de modo inconsciente (pelo fator “normalizador”), um álibi para questões cotidianas que subentendem um simples “admitir” que não se está dando conta do recado, no que tange à educação dessa criança. Assim, a responsabilidade por esta não-aprendizagem poderia, de forma generalizada, ser incutida somente à criança, ou melhor, à disfunção neurológica ou genética que possui.
Quero deixar claro, no entanto, que tais posturas não são uma tônica no ambiente familiar/escolar; entretanto, é possível perceber em alguma medida nos discursos médicos (das neurociências, principalmente) e pedagógicos em nível Brasil, a influência desse biopoder, nas circunstâncias medicalizadoras, em definir algumas diretrizes pedagógicas da educação. Assim, há de se ter o cuidado para que o cotidiano familiar e escolar não seja banalizado por predefinições, pois se a criança tem dificuldades, deve-se, antes de qualquer coisa, questionar a atuação da família e/ou da escola, no que concerne à sua metodologia e/ou às suas condições de ensino-aprendizagem.