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Morte de transexual deflagra procedimento estético clandestino em Santa Cruz

Melanie Aguiar, 20 anos, morreu em decorrência de complicações causadas por uma aplicação irregular de silicone industrial

Tiago Mairo Garcia
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Melanie Aguiar, 20 anos, era natural de Santa Maria e realizou procedimento em Santa Cruz do Sul. – Foto: Divulgação

Ter um corpo bonito. Este é o sonho alimentado por transexuais que, em busca da perfeição estética, se submetem a procedimentos de baixo custo realizados por pessoas sem formação médica ou especialização na área, colocando em risco a própria saúde com consequências irreversíveis e trágicas. Após um intenso trabalho de investigação, a equipe da 1ª Delegacia de Polícia de Santa Cruz do Sul elucidou a morte de uma jovem transexual ocorrida em decorrência de complicações causadas por procedimento estético irregular realizado de forma clandestina em Santa Cruz do Sul.

Socorrida pelo Samu após passar mal durante o procedimento, a jovem Melanie Aguiar, 20 anos, deu entrada no Hospital Santa Cruz no dia 27 de agosto em estado de coma por complicações causadas pela aplicação de silicone industrial, produto de uso proibido em humanos pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa). A jovem não resistiu e acabou vindo a falecer no dia 31 de agosto, vítima de uma síndrome séptica, que é a disfunção de múltiplos órgãos, sendo uma reação fatal do produto irregular no organismo da vítima.

Como o óbito foi registrado pela família na Delegacia de Polícia de Pronto Atendimento (DPPA), o caso foi encaminhado para investigação da 1ª Delegacia de Polícia. Ao ver mencionada a aplicação de silicone industrial de forma clandestina como causa do óbito, a delegada Ana Luisa Aita Pippi tratou o fato como homicídio doloso, dando início a uma investigação.

Em entrevista concedida ao Riovale Jornal na manhã da última quarta, 7, a delegada contou que houve dificuldades na busca por informações. O fato começou a ser elucidado após a polícia solicitar aos familiares o celular da vítima. “Na apuração do celular se constatou que havia um número de Caxias do Sul que possuía conversas com a vítima pelo WhatsApp. Achamos estranho que todas as conversas com este contato estavam apagadas na data do fato”, contou a delegada. Os policiais civis também encontraram no aparelho uma foto da vítima realizando a aplicação no quarto de uma casa.

Ao aprofundar a investigação, os agentes localizaram o print de uma compra de silicone industrial feita pela internet com endereço de entrega em Caxias do Sul para a mesma pessoa que falava com a vítima pelo aplicativo de mensagens.

Com base no endereço descoberto, foi solicitado para a justiça um mandado de busca e apreensão, que foi cumprido pela equipe da 1ª DP em uma residência de Caxias do Sul. No local, os agentes encontraram seringas e agulhas de vários tamanhos e descobriram que a pessoa suspeita era outra transexual que possuía o apelido de “Bombadeira” por realizar aplicações estéticas irregulares.

Ao ser ouvida, a suspeita confirmou que realizava os procedimentos há quatro anos mesmo sem possuir formação técnica na área de saúde e que teria realizado o procedimento com silicone industrial em Melanie. “Verificamos que aplicações com silicone industrial é uma prática comum entre mulheres e transexuais na busca pelo corpo perfeito, sendo um método mais barato do que o procedimento convencional de silicone em gel realizado em clínicas”, disse a delegada.

Procedimento realizado em Santa Cruz

Sobre o fato de o procedimento ter sido realizado em Santa Cruz do Sul, a Polícia Civil apurou que Melanie, natural de Santa Maria, veio ao município e conheceu a suspeita através de outra transexual, que realizou uma intervenção semelhante.

Foi quando a suspeita e Melanie se encontraram e combinaram que o procedimento aconteceria dias depois. A jovem já havia feito uma aplicação anterior com a mesma mulher, segundo a polícia, e queria fazer uma nova nos glúteos. O valor acertado entre as duas foi de R$ 2 mil, pois se tratava de uma segunda aplicação, mas em geral, o valor do procedimento era de R$ 3 mil.

Melanie pagou pelo procedimento, realizado no quarto alugado de uma casa onde ela costumava se hospedar em Santa Cruz do Sul. No celular da vítima, os policiais ainda encontraram fotografias tiradas durante a aplicação por volta de 20h30 do dia 27 de agosto. No celular da investigada, a polícia encontrou fotografias da aplicação realizada em Melanie.

Foram adquiridos cinco litros de silicone industrial para injetar na jovem. A polícia descobriu, inclusive, que o produto era de qualidade inferior. A responsável pela aplicação chegou a fazer uma reclamação na internet ao vendedor porque achou o silicone muito fino. Queria devolver o produto, mas desistiu e resolveu aplicar do mesmo jeito.

Durante o procedimento, Melanie começou a passar mal. A “Bombadeira” não terminou a aplicação, quando viu o estado da jovem abandonou o procedimento. Ela avisou a dona da casa e foi embora. Já Melanie começou a se debater de dor e a vomitar. A proprietária da casa chamou o socorro e avisou os familiares da vítima.

A “Bombadeira” realizava procedimento em várias partes do Estado, sendo possível que exista outras pessoas que fizeram com a suspeita em outros locais. Após desvendar o caso, a Polícia Civil indiciou a suspeita por homicídio doloso com dolo eventual e prática ilegal de medicina mediante pagamento. Por ser ré primária, ter endereço fixo e não se enquadrar nos requisitos legais, a polícia não efetivou o pedido de prisão preventiva da suspeita. O inquérito já está concluído e será remetido à justiça.

Ao avaliar o caso, a delegada Ana Pippi frisou que este era um universo desconhecido. “Não conhecíamos e surpreendeu ao ver o que as mulheres e transexuais fazem em busca do corpo perfeito e o padrão de beleza que buscam”. A delegada faz um alerta para mulheres e transexuais. “Vale a pena economizar e fazer a coisa certa com um profissional da área, em local adequado e com produtos corretos. Espero que as pessoas se alertem e pensem muito bem no que querem para si e se a vida vale isso”, finalizou a delegada.

Cirurgião plástico sobre silicone industrial: “extremamente perigoso”

Dr. João Samuel Conceição frisa a importância de se buscar profissionais éticos para realizar procedimentos estéticos com uso do silicone. -Foto: Divulgação

Questionado sobre o uso inadequado de silicone industrial em humanos, o médico especialista em cirurgia plástica, João Samuel Sarmento Silva Conceição, explica que o uso do produto não é indicado pela comunidade científica médica. “É extremante perigoso e o tratamento das complicações é complexo, isso quando há possibilidade de tratamento. O resultado a curto prazo até pode ser bom, mas é um produto inabsorvível e que quando dá problema, não se consegue separá-lo adequadamente dos tecidos do corpo, também pode causar reações sistêmicas sérias no organismo”, disse o médico.

Sobre o mercado clandestino de estética praticado por pessoas sem formação na área, o médico frisou que esta é uma situação triste e recorrente devido ao fato de pacientes partirem em busca de resultados estéticos por um custo menor, sem se importar com os riscos e pessoas, que prometem resultados milagrosos com um apelo demasiadamente comercial. “Ao invés de diagnósticos e tratamentos, vemos venda de produtos e serviços como se fossem resultados disponíveis em uma prateleira, onde se chega, aponta um resultado em uma embalagem e se escolhe. O dito “profissional” apenas executa a ordem do cliente”, salientou.

Para pessoas que desejam passar por procedimentos estéticos, o médico orienta realizar inicialmente um diagnóstico correto e preciso, sendo necessário avaliar as condições de saúde do paciente para planejar quais as possibilidades de tratamento, riscos, perspectivas de resultados e plano terapêutico. “O profissional deve ser, acima de tudo, ético. O paciente deve entender suas condições, os limites de cada técnica, seus riscos, e só então, após alinhamento com o profissional, realizar os procedimentos”, frisou.

Sobre implantes de silicone em gel, como de mama e glúteos, João Samuel destaca que os produtos são estudados e aprovados para uso pela Sociedade Brasileira de Cirurgia Plástica. “São diversos estudos de segurança para seu uso e apesar de terem seus riscos, são extremamente seguros. Esses implantes, por mais que haja ruptura, o que já é bem raro, ele não se dispersa no corpo, ao contrário do silicone industrial”, disse o médico.

O profissional destaca que a melhora da autoestima por procedimentos estéticos pode trazer benefícios até para demais aspectos da saúde. “No entanto, deve se buscar um profissional ético, qualificado e que vai expor de forma clara todos os aspectos envolvidos com cada procedimento”, finalizou.

O que é silicone industrial?

A Anvisa proíbe o uso de silicone industrial em procedimentos estéticos. O produto tem como finalidade a limpeza de carros e peças de avião, impermeabilização de azulejos, vedação de vidros, entre outras utilidades, e não deve ser utilizado no corpo. O produto não é esterilizado e nem preparado para o uso humano.

Quando aplicado no corpo, pode causar lesões gravíssimas na vítima, e até a morte. Algumas lesões podem não acontecer na hora, mas anos depois. Esses procedimentos, em geral, são realizados sem nenhuma higiene ou exame prévio. O produto é injetado diretamente no corpo com agulhas e seringas.

A Anvisa alerta que a aplicação ilegal do silicone industrial no corpo humano é considerada crime contra a saúde pública previsto no Código Penal — exercício ilegal da medicina, curandeirismo e lesão corporal.

A orientação para quem aplicou silicone industrial no próprio corpo é procurar um médico, mesmo que ainda não tenha sentido qualquer sintoma. Somente um especialista poderá avaliar a gravidade de cada caso.

Caso suspeite do uso de produtos utilizados de maneira incorreta, é possível entrar em contato com a Anvisa por meio da Ouvidoria (www.gov.br/anvisa/pt-br). Também é possível denunciar os casos diretamente à Polícia Civil (181 – Disque-Denúncia)

Fonte: Anvisa e Polícia Civil do RS