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A democracia dá trabalho

“Imaginemos sob quais aspectos novos o despotismo poderia produzir-se no mundo: vejo uma inumerável multidão de homens símiles e iguais que nada mais fazem que rodar sobre si mesmos, para procurarem pequenos e vulgares prazeres com que saciar a sua alma… Acima deles ergue-se um poder imenso e tutelar que se encarrega por si só de assegurar a usufruto de bens e de velar por sua sorte. É absoluto, minucioso, sistemático, previdente e brando”. Excerto extraído da obra do Norberto Bobbio – “O futuro da democracia” -, onde cita o livro “A democracia na América” escrito por Alexis de Tocqueville, em 1832.

Já em outras oportunidades, neste espaço abordei o tema sobre a democracia no seu escopo universal e nacional. A citação acima transcrita, se não tivesse sido escrita no século XIX, fruto de um trabalho analítico da democracia dos Estados Unidos, poderia e pode servir como uma luva em nossos dias.

Se após a segunda metade do século XX, a democracia de certa forma tornou-se uma unanimidade no mundo ocidental, por outro lado, os sintomas já verificados por Tocqueville, no século XIX, agora criaram uma dimensão e amplitude muito maior, seja pela liquidez das relações sociais travadas entre as pessoas, seja pelo poder exagerado das corporações de todas ordens, que transformam tudo em negócio, aliado ao fato de que cidadania ativa não faz parte da vida de uma parcela importante dos cidadãos, que com o avanço das tecnologias virtuais tornaram-se meros consumidores de produtos vulgares e fugazes.

A dimensão que temos da democracia, muitas vezes limita-se ao direito do voto, isto quando não há a objeção ao voto obrigatório. Votamos a cada dois anos e cumprimos com nosso dever político, e nos intervalos, alimentamos as redes sociais, falando mal da política e dos políticos. A democracia exige participação ativa, não é algo dado e estanque, e que não sofra as pressões do ambiente econômico, político e social, é assim que tem sido no decorrer dos últimos dois séculos no mundo.

A desconfiança de Tocqueville foi certeira, pois o despotismo pós-moderno traduz-se em total alienação de uma parcela enorme de pessoas, onde o mundo do consumo e pequenos prazeres absorve todas suas energias vitais, num ciclo infinito, tudo muito bem coordenado por forças não muito ocultas. E neste transe insano, o espaço para a lógica fascista floresce, liderada por falastrões autoritários e demagógicos, que com o discurso do ódio e da violência arrebatam multidões, na sua maioria formada por ingênuos que foram seduzidos por soluções simplistas para problemas complexos. Será que Brecht tinha razão quando afirmou que “a cadela do fascismo está sempre no cio”? Não quero acreditar.