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Brilho eterno

Tenho um amigo filósofo que há tempos atrás escreveu uma bela crônica sobre a importância do esquecimento e o valor das memórias para as nossas vidas. Tenho a lembrança de ter gostado muito dela, de cujo teor não me recordo completamente. Tinha como mote o também belo filme “Brilho eterno de uma mente sem lembranças”, que se passa num futuro próximo em que a tecnologia permite a eliminação de lembranças traumáticas, no caso, um relacionamento, um amor desfeito. Há uma série de arquivos que ao desaparecerem da tela nos deixam viver, ir em frente. Conforme a psicanálise, desde a infância somos dotados de mecanismos capazes de ocultá-los, mas que não os eliminam. Com o tempo, eles criam estratagemas para emergir do inconsciente.

Outro amigo já percorre o caminho do esquecimento que o destino lhe reservou a partir de uma conhecida moléstia, cada vez mais comum na idade madura. Sua mente opera alguns arquivos e outros não, especialmente os mais recentes são deletados. Como se o caminho, depois de andado, fosse desaparecendo. Não menos trágico é o fato de que a doença interrompe o ciclo das atividades normais, fazendo com que a vida se torne cada vez mais remissiva, tenha que extrair do que já passou o seu significado.

Temos uma memória coletiva, construída socialmente através de relatos validados ou não pela historiografia ou pela Ciência. Esta dispõe objetos em uma ordem que não deixa de necessitar de uma narrativa que os interligue, como a uma peça de cerâmica e um esqueleto. Já a memória popular ou informal, que é passada de geração em geração, depende de um critério de utilidade, pois ninguém vai importunar os outros com memórias sem nenhum valor útil apreciável. Ainda que essa utilidade possa ser uma ilusão, como muitos dos nossos conselhos aos mais jovens.

Há uma memória técnica coletada e armazenada por sistemas de processamento de dados, operada tanto por burocratas nos porões do SPC como por algoritmos que sabem mais sobre mim que eu mesmo.

A pele, também, é metáfora de uma memória genética de povos que se cruzaram no labirinto da trajetória humana e muitas vezes é sacada como distinção, discurso sobre o passado e até delírios racistas e xenófobos.

E existe a grande memória, a memória absoluta, que podemos chamar de Mundo Real. Ele guarda as marcas de tudo o que foi feito e desfeito e há muitas coisas que só ele viu e verá, civilizações que apareceram e desapareceram como uma pegada na areia. Uma grande explosão que inocentemente acreditamos ser o início de tudo ou a construção de um condomínio de luxo sobre terras que davam lugar a um banhado. Para ele tudo é dado, tudo é consequência e tudo é causa em uma teia infinita de relações entendida como Universo.

É nesta que ficarão inscritas a minha vida e a sua, quando todos se forem e ninguém mais se lembrar de nós. Os átomos que movimentamos, as pedras que rolamos e o que foi feito de tudo o que tocamos de uma vez para sempre.