Início André Pinto De golpe em golpe chega de papo

De golpe em golpe chega de papo

O receituário é antigo, a estratégia é surrada. No xadrez da política, a direita, principalmente o seu gomo mais extremado, má perdedora, quando não tem voto atira longe o tabuleiro, jogando a democracia ao chão, não sem o aplauso oportunista ou o silêncio leniente de reis, bispos e peões.

Cada qual das peças contemplam os que caem primeiro, acreditando que permanecerão sobre a mesa, que serão poupadas e, assim, lhes seja dado recolher as migalhas deixadas pelos que se foram.

Por não conhecerem a história e por excesso de confiança, não logram perceber que todos serão destruídos, sequer as torres das instituições se sustentarão em pé – basta que não mais sirvam aos propósitos do autocrata.

Para ficar apenas em episódios mais próximos, no tempo e no espaço, observe-se o que aconteceu no Paraguay, em Honduras, no Brasil e na Bolívia. Cuba e Venezuela têm resistido bravamente às investidas golpistas.

No caso brasileiro, as mesmas forças nada ocultas de 1954 e 1964, sem maioria eleitoral, voltaram em 2014, prometendo paralisar o Congresso, obstruir, boicotar, criar o caos. O candidato derrotado não reconheceu a vitória da Presidenta legitimamente eleita, pediu recontagem, impugnou, processou e aliou-se a conspiradores de todas as hierarquias – ingredientes decisivos para o Golpe de 2016 e para a ascensão de práticas fascistas nos anos seguintes.

Na mesma época, na Argentina, Cristina Kirchner, tão logo anunciada a eleição de Maurício Macri, por uma diferença de votos muito similar à da disputa Dilma-Aécio, tratou de cumprimentá-lo e oferecer uma transição colaborativa.

Tal qual se passa em terras estadunidenses. Há quatro anos Hillary Clinton, mesmo ganhando no voto popular, mas perdendo no número de delegados, o que é decisivo nas regras do sistema de lá, não precisou de mais que poucas horas para cumprimentar Trump. A recíproca agora não está ocorrendo, a despeito de o atual presidente ter feito 7 milhões de votos a menos. Insuflando lunáticos e perversos, desinformando iludidos, insistindo em mentiras, provoca instabilidade, gera insegurança e descrédito.

O filme ora assistido nos EUAN não é nada diferente do que eles próprios patrocinaram mundo afora, notadamente na América Latina, intitulando-se a maior democracia do ocidente, a única com legitimidade e poderio para restabelecer a paz e a legalidade, contra as quais eles mesmos conspiraram – por interesses geopolíticos, econômicos, sobretudo. Ditadores e facínoras somente são perseguidos e destruídos quando deixam de ter utilidade. Antes foram alimentados com poder, armas e adulados com fortunas.

Enquanto escrevo estas linhas, leio que o presidente Jair Bolsonaro torna a repetir as ameaças promovidas desde 2018. Questionado sobre a invasão no Capitólio, adverte expressamente (www1.folha.uol.com.br/poder/2021/01/07): “a falta de confiança nas eleições levou a este problema que está acontecendo lá”, “no Brasil, se não tivermos voto eletrônico em 2022 vai ser a mesma coisa” e “vamos ter problema pior que nos Estados Unidos”.

O recado está dado, mais claro impossível. Não aceitará eventual rejeição popular se as regras do jogo não forem moldadas aos seus caprichos, conquanto sejam as mesmas pelas quais se elegeu nos últimos 20 anos; ou seja, vaticina golpe. De desprezo pelas instituições já ofereceu provas contundentes.

Abdico de me estender na defesa da urna eletrônica, adotada em dezenas de países, cuja segurança está mais que demonstrada, merecendo toda a fiabilidade. A desconfiança artificial e propositalmente criada não tem pé nem cabeça. É tecla batida, fruto de ideias persecutórias. O som ouvido não é de macaquinho no telhado ou de raposa no forro; é o inconsciente a atormentar.

É inconcebível regressar ao voto impresso. Quem acompanhou as longas apurações nas décadas de 80 e 90 bem se recorda da insegurança que ele gerava, dos riscos reais de fraude e da nem sempre criteriosa e uniforme interpretação da intenção do eleitor ao rabiscar números e letras.

Na conjuntura atual, estou convencido que o voto de papel é o sonho de consumo das milícias, os coronéis da era ‘moderna’ – em versão muitíssimo mais perigosa e deletéria. A influência indevida e violenta delas no Rio de Janeiro, fazendo refém a população, tem sido mais intensa a cada gesta eleitoral e vem sendo insistentemente denunciada.

Mais que isso, as milícias estão se expandindo para além das fronteiras fluminenses, adquirindo outras roupagens e novos aliados. Estão empoderadas e armadas, quer porque em momento algum sequer censuradas pelo governo, quer pela retórica agressiva, de ódio de quem está à frente delas – autorizadoras, pois, quer pela política governamental de fácil acesso e uso de armas e munição.

Essa conjugação de fatores permite facilmente antever a subversão à ordem que os milicianos podem provocar e que interesses se prestariam favorecer/proteger.

É inadiável que se interdite a barbárie, que sejam responsabilizados, nos marcos legais, todos que atentarem contra a Constituição e o regime democrático. Que não se tolerem mais bravatas, ameaças e a falta de decoro.

A reação imprescindível não se fará com papo apenas, permeado por palavras cosméticas e liturgias bolorentas.

Cabe à sociedade acordar e se mobilizar e às instituições civis-militares, religiosas e midiáticas assumirem com atitudes claras, firmes e enérgicas a tarefa de preservação/restauração da democracia formal e material.