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Juízes frente às milícias digitais


Recentemente, cumprindo com o dever de decidir, respaldados pela prerrogativa da independência judicial, alguns magistrados gaúchos foram alvo de agressões inaceitáveis, formando um caldeirão de atitudes autoritárias, panfletárias, demagógicas, oportunistas, de má-fé e absurdamente reprováveis. Tiveram sua vida pessoal e familiar devassada, exposta com crueldade, sofreram as mais terríveis ameaças e todo o tipo de ofensas. 

Milícias digitais, em ato de terrorismo, quiseram jogá-los aos leões. Nela não estavam apenas figuras caricatas, anônimas, insanas, bravateiras, mas também pessoas conhecidas, com influência política e poderio econômico. Curiosamente estes, quase todos, autoproclamados cidadãos de bem, que usam Deus nas suas postagens, falam em família e amor, ostentam bons modos, no contato pessoal e na convivência social primam pela lhaneza e fidalguia. Fleumáticos, inspiram respeito, a partir da imagem propagandeada.Todavia, basta serem contrariados para, quais crianças mimadas, perderem todos os freios civilizatórios, transfigurarem-se em baderneiros do teclado, tornarem-se guerrilheiros irreconhecíveis. Descontrolados, insuflam seus seguidores, chegando a incitar o ódio e a prática de crimes. 

Não restarão impunes, em sendo suas condutas enquadradas como delito contra a honra, ameaça à integridade física e divulgação indevida de dados pessoais, tanto na esfera criminal quanto na órbita civil indenizatória. A própria Constituição prevê consequências para quem abusa, ultrapassando os limites das liberdades cidadãs. Nas redes sociais não há segredo, sabe-se, não há imunidade ao compartilhamento e à publicidade. Hoje tudo pode ser ‘printado’, sempre haverá alguém no grupo ou um ‘amigo’ virtual’ para repassar. É muito fácil tomar-se conhecimento de assaques lançados. 

Não se trata de censura – ressalto – de interdição da divergência, mas de responsabilidade com a qual todos devemos agir, sempre e sempre. Na democracia, decisões judiciais podem e devem ser submetidas ao debate público. O direito é uma ciência cultural, valorativa, permite mais de uma leitura sobre um mesmo fato, logo, não há lugar para tutor da verdade. Rebato o mito do juiz neutro. Desde o nascer fizemos escolhas, assumimos lado, elegemos dores, sabores, cores e amores. Cada história de vida é única, com suas cicatrizes e experiências. Atentos ou traídos pelas armadilhas do inconsciente, sempre e sempre nos posicionamos, coerentes com nossas crenças filosóficas, espirituais ou ideológicas. 

Nos definirmos neutros é não só uma contradição como uma camuflagem da adesão às formas de Poder, desprezando uma das melhores lições de Paulo Freire: “Todos somos orientados por uma base ideológica”.  Os juízes, integrantes do tecido social, não estão imunes a essas influências. Em não sendo a lei resultado de uma ação neutra, pois produto da intervenção humana, sequer o juiz “boca da lei” atuaria blindado das irradiações ideológicas e imune aos dados da política (não partidária) e da sociologia. Vou mais além: não lhe é dado se demitir da responsabilidade de suas decisões, esquecendo de perseguir a Justiça substancial. Diante de uma injustiça deve tomar posição, cumprir sua função social e não se pôr alheio ao conflito, indiferente, apolítico ou acrítico. 

Episódios como os acima referidos têm se tornado a cada dia mais frequentes. Ontem foram juízes que a horda quis açoitar em praça pública. Há bocado foram médicos, enfermeiros, jornalistas, comerciantes, que ousaram não atender à vontade de trogloditas, que se acham donos de tudo e de todos. Quem pensam que são? Porta-vozes da opinião pública?  De que povo falam? Dos seus interesses corporativos, que representam 5% da sociedade ou da massa popular, a quem nunca suportaram fosse dada voz e vez?

Fora da democracia ninguém está a salvo. O algoz de hoje pode ser a presa de amanhã. Somente na barbárie há lugar para a vontade imposta pelo grito, pela força e pela desobediência. A magistratura não está a serviço deste ou daquele interesse ou grupo. Ela apenas se submete à Constituição, expressão máxima da vontade popular, mesmo que o mundo venha abaixo. À sociedade não interessa ter juízes frouxos, medrosos, que decidam em favor de quem berra mais, do mais forte e que façam plebiscito de simpatia antes de cada decisão.Por isso, seguiremos firmes, apesar do submundo do fascismo digital, pois como sentenciou o velho Ruy Barbosa: “Não há salvação para o juiz covarde”.