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Narrativas de dor e liberdades

Marli Silveira: 'permitir a palavra a mulheres e homens que passaram pela experiência da prisão é questão fundamental para que a pauta do encarceramento possa ser discutida também a partir daqueles que sentiram e experienciaram a reclusão'

Sara Rohde
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Como é a situação dentro de um presídio? Como segue a vida de uma pessoa encarcerada? E após, fora das celas? Ser detenta não significa perder os direitos, muito menos a liberdade, a garantia de exercer a cidadania e de viver. Mas será que esta realidade é possível na vida de quem viveu num presídio?
Com o objetivo de dar voz e discutir a situação das mulheres que enfrentam o encarceramento, Marli Silveira lança ‘Liberdade rasurada – narrativas de dor e liberdades’ (Besourobox, 2019). A escritora procura com a obra literária “apresentar nuances que subvertem o lugar comum da condição humana, pensando a liberdade, o começar e a indeterminação própria do nosso modo como indispensáveis para ressignificar o olhar sobre o humano, transitando sobre o que tenho chamado de ‘interioridade desdobrada’, ou seja, pensar o nosso modo como um desdobramento entre o ‘dentro e o fora’. É o ponto, quem sabe, central das minhas buscas e escritas”.
Segundo Marli, o livro não tem a pretensão de esgotar o tema, mas de apresentar uma incursão sobre a condição humana a partir do modo de ser-detento, também garantindo dar voz a pessoas que passaram pela experiência da prisão. “Permitir a palavra a mulheres e homens que passaram pela experiência da prisão é questão fundamental para que a pauta do encarceramento possa ser discutida também a partir daqueles que sentiram e experienciaram a reclusão”, conta.
O livro tem relação com o trabalho anterior da escritora intitulado ‘Entre peles e poesias’, o qual narra histórias de presidiárias. Conforme Marli, para mulheres enfrentar o cárcere privado é difícil, mas após a soltura um grande desafio vem à frente. “Desde 2017, quando lançamos o ‘Entre Peles e Poesias’, e a partir da minha pesquisa atual, fui percebendo que além de garantir voz a mulheres que estavam na condição de reclusas, era fundamental manter vínculos com as que tinham deixado a prisão, pois a complexidade de quem sai de um presídio, em qualquer lugar e situação, é imensa e necessita de um olhar humanizador. Há resistências na grande maioria dos espaços, inviabilizando desde a contratação profissional à efetivação de laços afetivos”, explica.
“No caso da mulher, as pesquisas nos dão conta que muitas perdem companheiros, filhos e os vínculos familiares pelo peso moral que recai sobre a condição de ser uma ex-detenta. Articulada tal realidade com o fato de que a população carcerária feminina aumentou quase 600% entre 2004 e 2016, principalmente por causa do tráfico de drogas”. 
Para a escritora é essencial que sejam repensadas políticas públicas, ações, atividades e programas que visam assegurar os direitos a cidadania, principalmente que seja repensada uma política do encarceramento, o que será a solução de um grande problema.
O objetivo em escrever o livro, segundo Marli, é abordar as condições de encarceradas, mas também é a necessidade de expandir um assunto que por muitas vezes é posto de lado pela sociedade. “Como visibilizar pessoas que a sociedade deseja manter em regiões excluídas e ou úteis à constituição de uma racionalidade que nos informa constantemente. Não sei se temos todas as respostas, mas posso dizer que vivemos em meio a uma hipocrisia, balizada por chavões que em nada contribuem para se pensar o encarceramento no país”. 
Um olhar humanizado, que coloca à frente a educação. “Acredito na literatura como indispensável às cercanias do outro, na filosofia como uma das abordagens indispensáveis à discussão, principalmente por pensar que é a vulnerabilidade e a indeterminação que podem nos predispor a um olhar humanizante na direção dos outros. Quanto mais compreendermos e reiteradamente pautarmos tais aspectos como essenciais para a nossa vida e nossa existência social, mais nos daremos conta de que precisamos menos de armas e mais de disponibilidade”, explica.
Marli ressalta uma pesquisa recente que a cada 1% de armas em circulação, aumenta em até 2% os homicídios, “morrem no Brasil mais de 60 mil pessoas ao ano, a grande maioria por arma de fogo e quando assistimos, lemos ou ouvimos autoridades defenderem sem qualquer escrúpulo mais violência e o enfrentamento como único aceno para a complexidade do tema, percebemos que ou a sociedade e alguns organismos protagonizam o debate, ou seremos sucumbidos à desalentadora política da guerra às drogas e massacre de jovens, jovens pobres, mulheres pobres, etc”, finalizou.