Início Opinião As relações autofágicas e suas mazelas (Parte I)

As relações autofágicas e suas mazelas (Parte I)

Vivemos relações afetivas baseadas na ética do ganha-perde e sentimo-nos vitoriosos com isso. Não respeitamos mais leis mínimas de convivência, assim como somos desrespeitados a todo o momento. Naturalizamos relações de trabalho injustas, considerando que o mercado de trabalho é assim mesmo. Uma lógica perversa que nos domina e consome. Por isso, deve ser analisada dentro do contexto da flexibilização do mercado, em que relações individualistas triunfam sobre as ações coletivas e o poder disso tem como objetivo a própria natureza humana. Chegamos a uma forma de poder que regula a vida social por dentro, acompanhando-a, observando-a e rearticulando-a conforme a sua necessidade. É sobre essa questão que pretendemos refletir e que leva a outras tantas.
Quais são as razões que levam os trabalhadores a aceitar uma condição de servidão consentida? Sobre o poder, que, comumente, é exercido através de mecanismos que submetem as pessoas até o ponto em que se negam a si mesmas e, acabam sujeitando-se a situações que, por vezes, sequer são condizentes com a sua condição humana. Como agem os mecanismos de poder que desmobilizam e anestesiam toda uma população? Afinal, que máquina é essa que escraviza sutilmente o homem e a mulher? E pior, chegamos a ponto de defender o discurso “autorizado” do poder!
Inicialmente, precisamos entender como chegamos a um processo “que consome as pessoas por dentro” e de como trabalha o poder hoje com seus consequentes mecanismos na constituição do sujeito. Esse processo ganha força a partir da reconfiguração conservadora do capitalismo para fazer frente à crise do capital dos anos 70. Com isso, toda sociedade foi reorganizada de forma a garantir os ganhos do capital, através de estratégias poupadores de mão de obra (desemprego estrutural), de cortes drásticos nos gastos sociais e das famigeradas desregulamentações que golpearam direitos históricos dos trabalhadores adquiridos em lutas sofridas ao longo destas últimas décadas.
Em virtude dessa nova/velha ordem mundial, passamos da sociedade disciplinar à sociedade de controle como nos ensina o filósofo Deleuze. Na primeira, a dominação se fazia diretamente sobre cada indivíduo, adotando algumas estratégias de poder tênues e humildes, mas que impediam que o indivíduo escapasse ao poder que o vigiava, corrigia e constrangia. Logo, tornando-o dócil e útil, com pouca resistência, como observa Foucault em Vigiar e Punir. A partir da simbiose do liberalismo, neoliberalismo e globalização, o domínio se dá pela “colonização da alma” através de um controle invisível e sutil que atinge toda a humanidade: a própria autovigilância, a auto-opressão e os seus impedimentos. Ninguém precisa mais reprimir, porque isso já se tornou inconsciente em nós, e fizemos questão de “ser obediente” com medo do fantasma do emprego sem segurança.
Acuado, o sujeito sofre uma espécie de captura da capacidade de simbolizar-se e da capacidade de ser solidário com o outro. Assim, o poder se torna mais eficaz, sutil e, nesse sentido, mais brutal. Ele faz com que exista um controle subjetivo, contínuo e invasivo, que vai penetrando no mais fundo da nossa consciência, conquistando-a. Marcamos o sujeito, não mais pelo corpo, mas com imagens e pensamentos que não são os nossos. O que era um referencial apenas externo, hoje se tornou um referencial interno porque foi introjetado. Isto se traduz numa violência simbólica, ontológica e epistemológica sobre o sujeito, autopoieticamente, falando.
São inúmeras estratégias utilizadas pelo neoliberalismo, entre elas, temos a lógica que tudo é mercado. Isto passa a ser uma racionalidade central em torno da qual tudo é organizado. Ela triunfa porque tem algo a dizer a cada indivíduo através do senso comum. Ao dizê-lo passamos a ser aquilo em que nós nos transformamos: descartáveis/mercadoria. Pois, o neoliberalismo é um sistema que transcende o econômico, um produtor não apenas de mercadorias, mas também de subjetividades capitalísticas e de relações de trabalho, agenciando desejos, afetos, necessidades, padrões estéticos, éticos e políticos, intervindo diretamente no inconsciente das pessoas para poder ali reproduzir seus ciclos econômicos. Assim, seus fluxos irão apenas querer trabalhar com o indivíduo e não com o coletivo, mesmo quando se tratam de famílias, escolas, empresas ou sindicatos.
Ajustado com esta epidemia, o individualismo (face espiritual do liberalismo) se sobrepõe à ação coletiva. O indivíduo omisso, com seu ego colonizado, fica alheio em relação a qualquer manifestação compartilhada. Esse é, pois, um fluxo de poder que desmobiliza. A desmobilização e o enfraquecimento do potencial de luta das pessoas eram e continuam sendo um dos principais objetivos do neoliberalismo no mundo todo. Ou, como reafirma Bourdieu, de que os gestores da máquina do capital econômico lidam com “um programa de destruição metódica dos coletivos”, a constatação empírica disso são as relações de trabalho que permeiam esse ambiente tornando-as normais, bem como a nossa apatia diante das questões sociais e de corrupção. De modo que, a grande vítima é a solidariedade entre os pares. (Continua)

*Professor na Universidade Tuiuti do Paraná/Uníntese, Santo Ângelo. Doutorando em Epistemologia na UNTREF, Buenos Aires.